Na manhã de 16 de março de 1978, a Itália acordou para um pesadelo que duraria 55 dias e que marcaria para sempre a alma da nação. Aldo Moro, o arquiteto do “Compromisso Histórico” e um dos mais respeitados estadistas da Europa, foi sequestrado em uma emboscada brutal que deixou cinco de seus seguranças mortos.
O sequestro, orquestrado pelas Brigadas Vermelhas, não foi apenas um ato de terrorismo; foi um ataque ao coração da democracia italiana, um drama humano que paralisou um país e expôs a fragilidade de um sistema político sob cerco. A tragédia de Aldo Moro é a história de um homem abandonado, de uma nação em crise e da falência moral de uma ideologia que prometia a libertação através do sangue.
Os Anos de Chumbo

Moro não era apenas um político; era um intelectual refinado, professor de direito constitucional, um homem de diálogo que acreditava profundamente na capacidade da política de transcender divisões ideológicas. Sua visão do “Compromisso Histórico” — uma aliança inédita entre a Democracia Cristã e o Partido Comunista Italiano — era revolucionária para a época, buscando estabilidade em uma Itália dilacerada pelos “Anni di Piombo” (Anos de Chumbo).
A Itália dos anos 1970 era um caldeirão de tensões políticas. Os “Anni di Piombo” (Anos de Chumbo) foram marcados por uma violência endêmica, com grupos terroristas de extrema-esquerda e extrema-direita travando uma guerra secreta nas ruas. As Brigadas Vermelhas, uma organização marxista-leninista, emergiram como o grupo mais perigoso, buscando desestabilizar o Estado capitalista através de sequestros, assassinatos e atentados.
Contudo, em meio a esse caos, uma frágil esperança surgia: o “Compromisso Histórico“, uma aliança inédita entre a Democracia Cristã (DC) de Aldo Moro e o Partido Comunista Italiano (PCI) de Enrico Berlinguer. Esta colaboração, vista como uma traição pelos radicais de esquerda, visava garantir a estabilidade da Itália em um momento de crise econômica e social. Foi nesse cenário de esperança e ódio que as Brigadas Vermelhas decidiram atacar o símbolo máximo desse compromisso: Aldo Moro.
Emboscada na Via Fani: 90 Segundos de Terror

Um comando de 12 terroristas, disfarçados com uniformes da companhia aérea Alitalia, bloqueou o comboio de Aldo Moro em uma rua residencial tranquila. Os terroristas usaram metralhadoras Skorpion e pistolas, executando os guardas com tiros na cabeça para garantir que não houvesse sobreviventes. Moro, ileso fisicamente mas em choque profundo, foi arrastado para um carro e desapareceu nas ruas de Roma.
A operação foi executada com uma precisão militar assustadora. Às 9:02 da manhã, na Via Fani, em Roma, um comando de 12 terroristas bloqueou o comboio de Moro. Em menos de 90 segundos, foram disparados 91 tiros, matando os cinco seguranças de Moro: Domenico Ricci (31 anos), Oreste Leonardi (31), Raffaele Iozzino (49), Giulio Rivera (30) e Francesco Zizzi (28).
A brutalidade do ataque chocou a Itália. Os terroristas, disfarçados com uniformes da Alitalia, arrastaram Moro para um carro e desapareceram nas ruas de Roma. A nação estava em estado de choque. O homem que simbolizava a esperança de reconciliação havia sido sequestrado, e seus guardiões, assassinados a sangue frio. A Itália prendia a respiração, sem saber que o pior ainda estava por vir.
55 Dias de Agonia: As Cartas do Cativeiro

Aldo Moro no cativeiro, segurando uma edição do jornal “La Repubblica” com a manchete sobre seu próprio sequestro. Esta fotografia, divulgada pelas Brigadas Vermelhas, chocou o mundo. Moro aparece magro, envelhecido, com um olhar de profunda tristeza e resignação.
O cativeiro de Aldo Moro foi uma tortura psicológica tanto para ele quanto para a nação. As Brigadas Vermelhas o submeteram a um “julgamento popular” e exigiram a libertação de 13 de seus membros presos. Durante esses 55 dias, Moro escreveu 86 cartas à sua família, a políticos e ao Papa Paulo VI. As cartas, inicialmente cheias de esperança, tornaram-se progressivamente mais amargas e desesperadas. Moro sentia-se abandonado por seu próprio partido, que, sob a liderança de Giulio Andreotti e com o apoio do PCI, adotou a “linha da firmeza”: o Estado não negocia com terroristas.
Em uma de suas cartas, Moro escreveu: “Por que um homem inocente deve ser massacrado?”. Moro acusou seus colegas de partido de “covardia e fragilidade” e prometeu que, se saísse vivo, abandonaria a Democracia Cristã. As cartas de Moro são o testamento de um homem traído, um líder sacrificado em nome de uma razão de Estado que se mostrou desumana.
Carta ao Ministro do Interior Francesco Cossiga – 26 de março de 1978 (Domingo de Páscoa)
Trechos em italiano:
“Caro Francesco, mentre t’indirizzo un caro saluto, sono indotto dalle difficili circostanze a svolgere dinanzi a te, avendo presenti le tue responsabilità (che io ovviamente rispetto) alcune lucide e realistiche considerazioni. Prescindo volutamente da ogni aspetto emotivo e mi attengo ai fatti. Benché non sappia nulla né del modo né di quanto accaduto dopo il mio prelevamento, è fuori discussione — mi è stato detto con tutta chiarezza — che sono considerato un prigioniero politico, sottoposto, come Presidente della D.C., ad un processo diretto ad accertare le mie trentennali responsabilità.”
Tradução:
“Caro Francesco, enquanto te dirijo uma saudação carinhosa, sou levado pelas difíceis circunstâncias a expor diante de ti, tendo presentes as tuas responsabilidades (que eu obviamente respeito), algumas considerações lúcidas e realistas. Prescindo voluntariamente de qualquer aspecto emotivo e me atenho aos fatos. Embora não saiba nada nem do modo nem do que aconteceu após o meu sequestro, está fora de discussão — me foi dito com toda clareza — que sou considerado um prisioneiro político, submetido, como Presidente da D.C., a um processo direcionado a verificar as minhas responsabilidades de trinta anos.”
Carta sobre a Situação no Cativeiro
Texto em italiano:
“Nelle circostanze sopra descritte entra in gioco, al di là di ogni considerazione umanitaria che pure non si può ignorare, la ragione di Stato. Soprattutto questa ragione di Stato nel caso mio significa, riprendendo lo spunto accennato innanzi sulla mia attuale condizione, che io mi trovo sotto un dominio pieno ed incontrollato, sottoposto ad un processo popolare che può essere opportunamente graduato.”
Tradução:
“Nas circunstâncias acima descritas entra em jogo, além de toda consideração humanitária que também não se pode ignorar, a razão de Estado. Sobretudo esta razão de Estado no meu caso significa, retomando o ponto mencionado anteriormente sobre a minha atual condição, que eu me encontro sob um domínio pleno e incontrolado, submetido a um processo popular que pode ser oportunamente graduado.”
Carta de Despedida à Esposa Eleonora (Norina) – 7 de maio de 1978

Aldo Moro com seus filhos durante um evento público, em um raro momento de descontração familiar. Moro e Eleonora tiveram quatro filhos: Maria Fida, Agnese, Anna e Giovanni. Esta fotografia mostra Moro não como o arquiteto do Compromisso Histórico ou o líder da Democracia Cristã, mas como um pai amoroso, segurando uma de suas crianças no colo enquanto outra se senta ao seu lado. Para seus filhos, Aldo Moro não era um estadista: era simplesmente “papai”, o homem que voltava para casa após longas sessões no Parlamento, que ajudava com as lições de casa, que acreditava que a família era o refúgio sagrado contra as tempestades da política. Durante os 55 dias de sequestro, as crianças de Moro viveram um pesadelo. Elas assistiram, impotentes, enquanto sua mãe implorava ao governo que salvasse o pai.
Texto original (italiano):
“Cara Norina, mi hanno detto che fra poco mi uccideranno. Ti bacio per l’ultima volta, bacia i bambini.”
Tradução:
“Querida Norina, eles me disseram que em pouco tempo vão me matar. Eu te beijo pela última vez, beije as crianças.”
Abandono: Solidão de um Homem de Estado
A decisão do governo italiano de não negociar com as Brigadas Vermelhas é, até hoje, um dos aspectos mais controversos do caso Moro. Enquanto a família de Moro implorava por uma negociação que pudesse salvar sua vida, o establishment político se fechou em uma intransigência que muitos viram como uma sentença de morte.
O Papa Paulo VI, amigo pessoal de Moro, fez um apelo público aos “homens das Brigadas Vermelhas”, pedindo a libertação de Moro “sem condições”. Contudo, nem mesmo a intervenção do Papa foi suficiente para mover o governo. Moro, o hábil negociador, o homem do diálogo, viu-se isolado, traído por aqueles que ele havia servido por toda a vida. A “linha da firmeza” não foi uma demonstração de força, mas uma confissão de impotência, um abandono que selou o destino de Moro.
Assassinato de Aldo Moro: Epílogo de uma Tragédia

9 de maio de 1978, Via Caetani, Roma. Após 55 dias de cativeiro, o corpo de Aldo Moro foi encontrado no porta-malas de um Renault 4 vermelho, morto com 11 tiros no peito, disparados com a mesma arma usada para matar seus seguranças 55 dias antes.
Em 9 de maio de 1978, após 55 dias de cativeiro, as Brigadas Vermelhas anunciaram que haviam executado Aldo Moro. Seu corpo foi encontrado no porta-malas de um Renault 4 vermelho na Via Caetani, uma rua simbolicamente localizada entre a sede da Democracia Cristã e a do Partido Comunista. Moro havia sido morto com 11 tiros no peito. A escolha do local foi a última e mais cínica mensagem dos terroristas: para eles, ambos os partidos eram responsáveis pela morte de Moro.
A autópsia revelou que Moro havia perdido peso significativo durante o cativeiro e mostrava sinais de estresse extremo. A Itália mergulhou em luto. Multidões se reuniram na Via Caetani, deixando flores e chorando abertamente. Contudo, a família de Moro, em um ato de suprema dignidade e protesto, recusou um funeral de Estado. Eleonora Moro, sua viúva, declarou que não queria ver os rostos dos políticos que haviam abandonado seu marido. O funeral foi realizado em uma cerimônia privada em Torrita Tiberina, a cidade natal de Moro, longe de Roma e longe dos políticos que, em sua visão, o haviam condenado à morte.
Falência do Terror: Legado das Brigadas Vermelhas
O assassinato de Aldo Moro foi o clímax da violência das Brigadas Vermelhas, mas também o início de seu fim. O ato, longe de inspirar uma revolução, gerou repulsa e isolou os terroristas da sociedade italiana. A brutalidade do sequestro e a crueldade do assassinato desmascararam a vacuidade de sua ideologia. O terrorismo não se mostrou uma ferramenta de libertação, mas uma forma de tirania que destrói vidas inocentes em nome de uma utopia sangrenta.
Nos anos seguintes, o Estado italiano intensificou a luta contra o terrorismo, e as Brigadas Vermelhas, sem apoio popular e caçadas pela polícia, entraram em colapso. O caso Moro é a prova definitiva de que a violência revolucionária não constrói um mundo melhor; mas apenas destrói o que há de mais precioso na humanidade: a vida, a dignidade e a esperança.
Legado de Aldo Moro: Uma Lição para a História
Aldo Moro permanece uma figura trágica na história italiana, um mártir da democracia. Seu sequestro e assassinato representaram o ponto mais baixo dos Anos de Chumbo e uma ferida que nunca cicatrizou completamente. Contudo, seu legado também é de esperança. A firmeza do Estado italiano, embora controversa, demonstrou que a democracia não se curva ao terror. A repulsa da sociedade ao assassinato de Moro fortaleceu os valores democráticos e isolou os extremistas.
A história de Aldo Moro é um lembrete sombrio de que a política, quando desprovida de humanidade, pode se tornar uma máquina de moer vidas. E que o terrorismo, em sua arrogância de se autoproclamar a vanguarda da história, é apenas um beco sem saída, uma ideologia de morte que, no final, consome a si mesma. A memória de Aldo Moro não é apenas a de um homem assassinado, mas a de um ideal de diálogo e compromisso que, mesmo em face da morte, se mostrou superior à barbárie de seus carrascos.
Referências Bibliográficas
- “The Dark 70s of Italy: Aldo Moro’s Last 55 Days.” Unplugged Routes. https://unpluggedroutes.com/en/the-dark-70s-of-italy-aldo-moros-last-55-days/.
- “Bitterness Is Evident in Moro Letters.” Tampa Bay Times. https://www.tampabay.com/archive/1990/10/22/bitterness-is-evident-in-moro-letters/.
- “Kidnapping and Murder of Aldo Moro.” Wikipedia, The Free Encyclopedia. https://en.wikipedia.org/wiki/Kidnapping_and_murder_of_Aldo_Moro.











Sou pesquisador independente comprometido com uma investigação profunda sobre geopolítica, história e memória visual. Fui coordenador do Imagens Históricas, que chegou a ser o maior projeto independente do Brasil no biênio 2012-2014, com mais de 1 milhão de seguidores apenas no Facebook. Acredito que compreender o passado com profundidade é uma forma de decifrar o presente e antecipar o futuro. Criei o GeoMagno como um espaço para explorar conexões culturais esquecidas, fatos relevantes e os impactos silenciosos dos grandes acontecimentos sobre a nossa identidade coletiva. Entre arquivos, documentos e narrativas visuais, busco transformar história em uma experiência acessível, rica em contexto e livre de revisionismo e simplificações.