Escolha uma Página

Aracy de Carvalho Guimarães Rosa: O Anjo de Hamburgo

Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, esposa do famoso escritor, usou sua posição no consulado para enganar nazistas e salvar vidas. Uma história de coragem e humanidade.

Em meio à escuridão que se abateu sobre a Europa com a ascensão do nazismo, quando a indiferença e o medo paralisavam nações inteiras, uma mulher brasileira se ergueu como um farol de coragem e humanidade. Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, conhecida como “O Anjo de Hamburgo”, desafiou ordens diretas de seu próprio governo e arriscou sua vida para salvar centenas de judeus da perseguição implacável do Terceiro Reich. Sua história, por muito tempo envolta na discrição que lhe era característica, revela uma das mais notáveis empreitadas de heroísmo individual durante o Holocausto, um testemunho poderoso da capacidade de uma única pessoa de confrontar a tirania.

Aracy de Carvalho Guimarães Rosa: Uma Mulher à Frente de Seu Tempo

Nascida em Rio Negro, Paraná, em 1908, Aracy de Carvalho era uma figura de vanguarda. Em uma época em que as mulheres no Brasil tinham pouca autonomia, Aracy tomou uma decisão radical nos anos 1930: separou-se do primeiro marido e, em 1934, mudou-se para a Alemanha com seu filho pequeno, Eduardo, em busca de independência. Poliglota, fluente em alemão, francês e inglês, conseguiu um emprego no Consulado Brasileiro em Hamburgo, onde, em 1936, foi nomeada chefe da Seção de Passaportes. Sua posição, incomum para uma mulher na época, seria o instrumento de sua resistência silenciosa.

Contexto Sombrio: A Circular Secreta e a Noite dos Cristais

Para compreender a magnitude dos atos de Aracy, é preciso mergulhar no clima político da época. No Brasil, o governo de Getúlio Vargas, embora mantivesse uma aparente neutralidade, nutria simpatias por regimes autoritários e implementou uma política migratória restritiva com claro viés antissemita. Em 1937, o Itamaraty emitiu a Circular Secreta nº 1.127, um documento infame que instruía os consulados brasileiros a negarem sistematicamente vistos a pessoas de “origem semita”. Essa política desumana fechou as portas do Brasil para milhares de judeus que buscavam desesperadamente uma rota de fuga da Europa.

Na Alemanha, a situação se deteriorava rapidamente. A perseguição, que começara com leis discriminatórias, culminou em violência aberta. Na noite de 9 para 10 de novembro de 1938, conhecida como Kristallnacht (Noite dos Cristais), sinagogas foram incendiadas, lojas judaicas foram destruídas e dezenas de judeus foram assassinados em um pogrom orquestrado pelo Estado. Foi nesse cenário de terror crescente que Aracy, então chefe da seção de passaportes no consulado brasileiro em Hamburgo, tomou a decisão que definiria seu legado.

A Coragem Silenciosa de uma Burocrata

Aracy de Carvalho não era uma espiã ou uma combatente armada. Sua arma era sua posição burocrática, sua caneta e uma coragem inabalável. Sabendo que o cônsul-geral, Joaquim de Souza Leão, era avesso a ler a papelada que assinava, Aracy desenvolveu um método arriscado e audacioso para burlar as ordens de seu próprio país. Aracy preparava os vistos para famílias judaicas, omitindo qualquer menção à sua origem, e os inseria habilmente no meio de pilhas de documentos rotineiros. O cônsul, impaciente, assinava tudo, sem perceber que estava autorizando a salvação de dezenas de vidas.

Sua ajuda, contudo, ia muito além da emissão de vistos. Aracy escondia pessoas em seu próprio apartamento, transportava seus bens em seu carro particular – que gozava de imunidade diplomática – para evitar o confisco pelos nazistas, e os acompanhava pessoalmente até o porto, garantindo que embarcassem em segurança. Ela nunca aceitou qualquer pagamento por seus atos, movida unicamente por um profundo senso de justiça e compaixão. Quando questionada, anos mais tarde, sobre sua motivação, sua resposta foi simples e poderosa:

“Fiz isso porque somos todos irmãos”.

Aracy e João Guimarães Rosa: Um Amor Nascido na Adversidade

Em 1938, um novo cônsul-adjunto chegou a Hamburgo: João Guimarães Rosa, que viria a se tornar um dos maiores escritores da literatura brasileira. João rapidamente percebeu as atividades clandestinas de Aracy e, em vez de denunciá-la, tornou-se seu cúmplice e, posteriormente, seu grande amor. A cumplicidade no risco e no propósito humanitário forjou uma ligação profunda entre os dois. Casaram-se em 1940, e Guimarães Rosa imortalizaria sua admiração pela esposa na dedicatória de sua obra-prima, “Grande Sertão: Veredas“: “A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro”.

Justa Entre as Nações: O Reconhecimento de um Legado

Por décadas, o heroísmo de Aracy permaneceu conhecido apenas por aqueles que ela salvou e por um círculo íntimo de familiares. Contudo, em 3 de junho de 1982, o Yad Vashem, o Memorial do Holocausto em Israel, concedeu-lhe o título de “Justa Entre as Nações”, a mais alta honraria concedida a não-judeus que arriscaram suas vidas para salvar judeus durante o Holocausto. Aracy de Carvalho Guimarães Rosa é, até hoje, a única mulher brasileira a receber tal distinção, um fato que ressalta a singularidade de sua coragem.

Seu nome está inscrito no Muro da Honra no Jardim dos Justos, em Jerusalém, ao lado de outros heróis como Oskar Schindler e Irena Sendler. A história de Aracy é um lembrete contundente de que, mesmo nos momentos mais sombrios da história, a decência humana pode prevalecer. Ela não apenas salvou vidas, mas também salvaguardou a honra de uma nação que, oficialmente, havia escolhido fechar os olhos para a barbárie. O “Anjo de Hamburgo” é uma heroína que o Brasil e o mundo jamais devem esquecer.

Referências Bibliográficas

  1. “Aracy Carvalho de Guimarães Rosa.” Yad Vashem — The Righteous Among the Nations Database. https://www.yadvashem.org/righteous/stories/carvalho.html.
  2. “A história e a família do ‘Anjo de Hamburgo’.” Revista Morashá, 2008. https://www.morasha.com.br/holocausto/a-historia-e-a-familia-do-anjo-de-hamburgo.html.
  3. “A época em que o Brasil barrou milhares de judeus que fugiam do nazismo.” BBC News Brasil, 2019. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46899583.
02/10/2025

Conheça a história de Aracy Guimarães Rosa, o "Anjo de Hamburgo", a única brasileira "Justa Entre as Nações" que salvou centenas de judeus do Holocausto.

Italo Magno Jau

Sou pesquisador independente comprometido com uma investigação profunda sobre geopolítica, história e memória visual. Fui coordenador do Imagens Históricas, que chegou a ser o maior projeto independente do Brasil no biênio 2012-2014, com mais de 1 milhão de seguidores apenas no Facebook. Acredito que compreender o passado com profundidade é uma forma de decifrar o presente e antecipar o futuro. Criei o GeoMagno como um espaço para explorar conexões culturais esquecidas, fatos relevantes e os impactos silenciosos dos grandes acontecimentos sobre a nossa identidade coletiva. Entre arquivos, documentos e narrativas visuais, busco transformar história em uma experiência acessível, rica em contexto e livre de revisionismo e simplificações.