No coração da Europa, em pleno final do século XX, um conflito de uma brutalidade quase inconcebível eclodiu, deixando uma cicatriz indelével na consciência do continente. A Guerra da Bósnia e Herzegovina, travada oficialmente entre 6 de abril de 1992 e 14 de dezembro de 1995, foi muito mais do que um confronto militar; foi uma descida ao inferno da limpeza étnica, dos campos de concentração e do genocídio, em uma escala que a Europa não via desde o Holocausto.
Com um saldo estimado entre 100.000 e 200.000 mortos e mais de dois milhões de refugiados, a guerra desintegrou não apenas um país, mas a própria noção de humanidade, transformando vizinhos em carrascos e playgrounds em cemitérios. Essa é a história de um conflito esquecido por muitos, mas cujas lições sobre o ódio, a indiferença e a resiliência humana jamais deveriam ser ignoradas.
Barril de Pólvora dos Bálcãs: Uma Paz Desfeita
A República Socialista da Bósnia e Herzegovina, parte da antiga Iugoslávia, era um mosaico de etnias e religiões, onde bósnios muçulmanos (44%), sérvios ortodoxos (31%) e croatas católicos (17%) coexistiam sob o lema da “Irmandade e Unidade”. Contudo, com o colapso do comunismo e o fim da Guerra Fria, as fissuras há muito contidas começaram a se alargar. O nacionalismo, suprimido durante décadas pelo regime de Tito, ressurgiu com uma força avassaladora.
Em 29 de fevereiro de 1992, um referendo sobre a independência da Bósnia foi realizado. Com uma participação majoritariamente bósnia e croata, o resultado foi um retumbante “sim”. Contudo, os sérvios bósnios, que boicotaram a votação, viram o resultado como uma ameaça existencial, o primeiro passo para sua marginalização em um novo estado dominado por muçulmanos. A paz, já frágil, estava prestes a se estilhaçar.
Os Três Marcos do Início da Guerra: Narrativas Fraturadas de um Conflito
Cada um desses três eventos revela como as diferentes comunidades da Bósnia interpretaram o início da guerra através de suas próprias lentes de vitimização e justificação. Os croatas viram Ravno como prova da agressão sérvia. Os sérvios viram o ataque ao casamento como evidência de que não eram bem-vindos na nova Bósnia. Os muçulmanos bósnios viram Bijeljina como o início de uma campanha genocida.
A tragédia é que cada lado tinha razões legítimas para se sentir ameaçado, mas essas percepções de ameaça foram manipuladas por líderes nacionalistas para justificar atrocidades cada vez maiores. O que começou como incidentes locais de violência escalou rapidamente para uma guerra total, alimentada por narrativas de vitimização que tornaram cada ato de violência uma “resposta” justificada a uma “provocação” anterior.
Esses três marcos não apenas definiram o início da guerra, mas também prenunciaram sua natureza: um conflito onde a distinção entre civis e combatentes seria deliberadamente apagada, onde a violência contra não combatentes seria não apenas tolerada, mas sistematicamente organizada, e onde cada ato de brutalidade seria justificado como uma resposta necessária às brutalidades do “outro lado”.
A lição mais sombria desses três eventos é como rapidamente vizinhos podem se tornar inimigos quando narrativas de medo e ódio são deliberadamente cultivadas e exploradas por aqueles que lucram com o conflito.
Croatas (Guerra Patriótica)
Para os croatas, a “Guerra Patriótica” começou com a destruição sistemática da aldeia de Ravno, no leste da Herzegovina, em 1º de outubro de 1991. O ataque, perpetrado pelo Exército Popular Iugoslavo (JNA) e reservistas de Montenegro e Herzegovina, foi o primeiro ato de agressão direta contra uma comunidade croata na Bósnia e Herzegovina. Para os croatas, Ravno representou o momento em que ficou claro que a coexistência pacífica na Iugoslávia havia chegado ao fim.
Ravno
Ravno era uma pequena aldeia croata com cerca de 400 habitantes, situada estrategicamente na rota entre a Sérvia e Dubrovnik. O ataque não foi um ato isolado de violência, mas parte de uma campanha militar maior para estabelecer um corredor territorial que ligasse a Sérvia ao cerco de Dubrovnik, na Croácia. As forças do JNA, apoiadas por paramilitares sérvios locais, bombardearam e incendiaram sistematicamente todas as casas croatas da aldeia.
O que tornou Ravno particularmente significativo para a narrativa croata foi a natureza premeditada e sistemática da destruição. Não houve combate militar real. A aldeia foi simplesmente arrasada. As casas foram queimadas uma por uma, o gado foi morto, e os símbolos da identidade croata, incluindo a igreja católica, foram deliberadamente destruídos. Os habitantes que não conseguiram fugir a tempo foram mortos ou deportados.
Sérvios (Guerra de Defesa da Pátria)
Para os sérvios bósnios, a “Guerra de Defesa da Pátria” começou com o que eles veem como um ataque covarde e premeditado contra civis inocentes em Sarajevo. Por volta das 14h30 de domingo, dia 1º de março de 1992, um cortejo de casamento sérvio que passava pelo bairro histórico muçulmano de Baščaršija foi atacado a tiros, resultando na morte de Nikola Gardović, pai do noivo, e ferindo gravemente o padre ortodoxo Radenko Mirović.
Ataque ao Cortejo de Casamento
O ataque ocorreu no último dia do controverso referendo sobre a independência da Bósnia, que os sérvios haviam boicotado. O cortejo de casamento, seguindo a tradição sérvia, carregava bandeiras sérvias e cantava canções tradicionais enquanto celebrava nas ruas de Sarajevo. Para muitos sérvios, o cortejo de casamento era um direito fundamental, vez que celebravam sua cultura em uma cidade que consideravam seu lar há gerações.
O atirador foi identificado como Ramiz Delalić, um criminoso conhecido com histórico de violência e problemas psiquiátricos. Contudo, o que mais enfureceu a comunidade sérvia foi a aparente proteção que Delalić recebeu das autoridades bósnias muçulmanas. Apesar de ter um mandado de prisão pendente por outros crimes, incluindo estupro, as autoridades fizeram pouco esforço para prendê-lo antes do ataque
Crime e Impunidade
O mais perturbador para a narrativa sérvia foi que Delalić mais tarde admitiu publicamente, em uma entrevista televisionada, ter atirado nos convidados do casamento. Delalić não apenas escapou da punição imediata, mas foi autorizado a formar uma milícia paramilitar durante o cerco de Sarajevo, atacando tanto sérvios quanto muçulmanos bósnios. As autoridades só agiram contra ele em 1993, quando sua milícia começou a atacar não sérvios também.
Para os sérvios, o ataque ao casamento representou não apenas um ato de violência, mas uma declaração de que eles não eram bem-vindos na nova Bósnia independente. Foi o momento em que muitos sérvios bósnios se convenceram de que precisavam se defender contra o que viam como uma conspiração muçulmana-croata para marginalizá-los. A imagem de um pai morto no dia do casamento de seu filho, vítima de um ataque aparentemente aleatório, tornou-se um símbolo poderoso para os sérvios.
Bósnios (Agressão à Bósnia e Herzegovina)
Para os bósnios, a “Agressão à Bósnia e Herzegovina” começou em 1º de abril de 1992, quando paramilitares sérvios, sob as ordens de Jovica Stanišić, chefe do serviço secreto de Slobodan Milošević, cruzaram a fronteira e perpetraram o primeiro massacre de civis muçulmanos em Bijeljina. Independentemente da data, o resultado foi o mesmo: uma espiral de violência que engoliria o país.
Bijeljina
Bijeljina, uma cidade de cerca de 96.000 habitantes na fronteira com a Sérvia, havia sido declarada capital de uma “Oblast Autônoma Sérvia” em setembro de 1991. A cidade tinha uma população mista, mas os sérvios constituíam a maioria. Em resposta às crescentes tensões, um pequeno grupo paramilitar muçulmano, a Liga Patriótica, havia se formado, mas estava mal organizado e mal equipado.
Em 31 de março de 1992, paramilitares sérvios locais, conhecidos como “Chetniks de Mirko”, provocaram deliberadamente um confronto com a Liga Patriótica. No dia seguinte, 1º de abril, a Guarda Voluntária Sérvia (SDG), conhecida como “Tigres de Arkan” e liderada pelo criminoso de guerra Željko Ražnatović (Arkan), cruzou a fronteira da Sérvia com o apoio do Exército Popular Iugoslavo.
Massacre de Bijeljina
O que se seguiu foi um massacre sistemático. Os Tigres de Arkan, junto com paramilitares locais, não apenas mataram combatentes da Liga Patriótica, mas começaram a executar civis muçulmanos de forma indiscriminada. Homens foram separados de suas famílias e executados. Mulheres foram estupradas. Casas muçulmanas foram saqueadas e queimadas. O fotojornalista Ron Haviv capturou uma das imagens mais chocantes da guerra: um paramilitar sérvio chutando uma mulher muçulmana moribunda.
O massacre de Bijeljina foi particularmente significativo porque estabeleceu o modelo para a “limpeza étnica” que seria aplicado em toda a Bósnia. Não foi apenas uma questão de conquistar território militar, mas de eliminar sistematicamente a presença muçulmana. Todas as mesquitas da cidade foram destruídas. Nove campos de detenção foram estabelecidos. Muitos muçulmanos que sobreviveram ao massacre inicial foram deportados ou mortos posteriormente.
Crime de Guerra na Bósnia
O aspecto mais sinistro foi a tentativa de encobrir os crimes. Quando uma delegação do governo bósnio chegou para investigar, os corpos das vítimas já haviam sido removidos. Muitas mortes não foram oficialmente registradas como vítimas de guerra, com certidões de óbito alegando que as pessoas “morreram de causas naturais”.
O Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia conseguiu verificar entre 48 e 78 mortes durante o massacre inicial, mas investigações pós-guerra documentaram a morte de mais de 250 civis de todas as etnias no município durante toda a guerra. De uma população pré-guerra de 30.000 muçulmanos bósnios, menos de 2.700 permaneceram no final da guerra.
Cerco de Sarajevo: 1.425 Dias de Agonia

Um pai corre desesperadamente carregando sua filha pequena nos braços durante um ataque em Sarajevo.
Nenhum lugar simboliza mais o sofrimento da Guerra da Bósnia do que sua capital, Sarajevo. A cidade, outrora um vibrante como anfitriã dos Jogos Olímpicos de Inverno de 1984 e centro multicultural, foi submetida ao cerco mais longo da história moderna, durando 1.425 dias. De abril de 1992 a fevereiro de 1996, as forças sérvias bósnias, posicionadas nas colinas ao redor da cidade, bombardearam implacavelmente a população civil. A vida em Sarajevo tornou-se uma luta diária pela sobrevivência.
Maja Pašović, que tinha apenas cinco anos quando a guerra começou, recorda a transformação de sua infância: “Anos que deveriam ser preenchidos com liberdade, alegria, risos e despreocupação se transformaram em quatro anos de medo constante, dor, perda e devastação”. Sua infância, como a de milhares de outras crianças, tornou-se “um fluxo interminável de bombardeios, sirenes de ataque aéreo, gritos e sofrimento”.
Os porões e abrigos tornaram-se os novos lares, playgrounds e salas de aula. A “Avenida dos Snipers” tornou-se uma roleta russa mortal, onde atravessar a rua era um ato de coragem desesperada. Mais de 11.000 pessoas, incluindo 1.600 crianças, foram mortas durante o cerco. A cidade, faminta e aterrorizada, tornou-se um símbolo da inação internacional, um lugar onde a esperança era o único bem que não podia ser destruído pelos morteiros.
Destruição de Sarajevo

Edifícios de apartamentos em Sarajevo reduzidos a cascas vazias após anos de bombardeio implacável durante o cerco mais longo de uma capital na história moderna (1992-1996).
A destruição sistemática da infraestrutura civil de Sarajevo não foi um dano colateral acidental da guerra, mas tratou-se de uma estratégia deliberada de limpeza étnica e terror psicológico. Forças sérvias bósnias, posicionadas nas colinas circundantes com vantagem tática clara, bombardearam a cidade com artilharia pesada, morteiros e foguetes durante 1.425 dias consecutivos. A média era de 329 projéteis por dia, mas em dias de bombardeio intenso, milhares de projéteis choviam sobre áreas residenciais, mercados, hospitais, escolas e até cemitérios.
Nenhum lugar era seguro. Edifícios de apartamentos, outrora lares de famílias comuns, foram transformados em ruínas perfuradas. Moradores que permaneceram na cidade sitiada viviam em condições inimagináveis: sem eletricidade, sem aquecimento durante invernos rigorosos dos Bálcãs (temperaturas frequentemente abaixo de zero), sem água corrente, sem comida suficiente. Famílias queimavam móveis, livros e até parquê dos pisos para se aquecer.
Cidade Multicultural
Crianças cresceram conhecendo apenas guerra, aprendendo a distinguir sons de diferentes armas antes de aprenderem a ler. A destruição física de Sarajevo era acompanhada pela destruição de seu tecido multicultural. Antes da guerra, Sarajevo era conhecida como a “Jerusalém da Europa”, uma cidade onde mesquitas, igrejas católicas, igrejas ortodoxas e sinagogas coexistiam harmoniosamente. Muçulmanos, sérvios, croatas e judeus viviam como amigos, colegas e vizinhos. A guerra destruiu essa coexistência.
Após a reconstrução, marcas de projéteis nas calçadas foram preenchidas com resina vermelha, criando “Rosas de Sarajevo” como memoriais permanentes dos locais onde civis foram mortos.
Morte do Multiculturalismo

O momento exato em que a Ponte Velha (Stari Most) de Mostar, uma obra-prima da arquitetura otomana de 427 anos, desaba no rio Neretva após bombardeio sistemático por forças croatas (HVO).
9 de novembro de 1993, 10h15 da manhã. O momento exato em que a Ponte Velha (Stari Most) de Mostar, uma obra-prima da arquitetura otomana de 427 anos, desaba no rio Neretva após bombardeio sistemático por forças croatas (HVO). A imagem captura o instante preciso em que um símbolo de 427 anos de coexistência multicultural foi deliberadamente destruído. A ponte havia resistido a terremotos, inundações e duas guerras mundiais, mas não sobreviveu ao ódio étnico da década de 1990. Testemunhas descreveram o momento como assistir a um assassinato.
Após 60 projéteis diretos de artilharia e tanques, a estrutura de pedra calcária finalmente cedeu e desabou nas águas do Neretva. O som do colapso ecoou pelas colinas de Mostar, e muitos moradores choraram abertamente. A destruição da ponte não foi um dano colateral acidental, mas sim um ataque calculado à identidade cultural e à memória compartilhada.
Ponte de Stari Most (Ponte Velha)
Construída em 1566 pelo arquiteto otomano Mimar Hayruddin, a ponte conectava as comunidades croata e muçulmana de Mostar, servindo como símbolo físico e metafórico de união. Seu arco único de 29 metros, construído sem argamassa (apenas pedras perfeitamente encaixadas), era uma maravilha da engenharia. Durante séculos, jovens locais demonstravam coragem pulando da ponte de 24 metros de altura nas águas geladas do Neretva, tornando uma tradição que se tornou parte da identidade cultural da cidade.
A destruição da ponte foi reconhecida pelo Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia como um crime de guerra. O comandante croata Slobodan Praljak foi condenado por destruição intencional de monumentos culturais e históricas. A ponte foi meticulosamente reconstruída entre 2001 e 2004, usando técnicas tradicionais e pedras originais recuperadas do rio. Foi reinaugurada em 23 de julho de 2004 e declarada Patrimônio Mundial da UNESCO em 2005.
Abusos Contra os Direitos Humanos e Crimes Contra a Humanidade

Cena de um crime de guerra durante a Guerra da Bósnia, mostrando corpos de vítimas executadas. Esta imagem documenta a brutalidade dos crimes de guerra cometidos durante o conflito, incluindo assassinatos em massa, execuções sumárias e massacres de civis que caracterizaram particularmente a limpeza étnica sistemática.
Durante a Guerra da Bósnia (1992-1995), estima-se que 100.000 pessoas foram mortas, das quais aproximadamente 80% eram civis. Massacres de civis ocorreram em todo o país, perpetrados principalmente por forças sérvias bósnias, mas também por forças croatas e, em menor escala, por forças bósnias. Métodos de execução variavam: fuzilamentos em massa (como em Srebrenica), execuções individuais de civis em suas casas, assassinatos durante “limpeza” de vilas, e mortes em campos de concentração.
Imagens como esta serviram como evidência crucial em julgamentos de crimes de guerra. Fotógrafos e jornalistas que documentaram atrocidades arriscaram suas vidas para garantir que o mundo soubesse o que estava acontecendo e que perpetradores não pudessem negar seus crimes. Esta fotografia é um testemunho silencioso de uma das páginas mais sombrias da história europeia recente e são um lembrete de que o genocídio e a limpeza étnica não são apenas relíquias do passado, mas ameaças presentes que exigem vigilância constante.
Horror dos Campos na Bósnia: Omarska, Trnopolje e a Face do Mal
Sarajevo foi o símbolo do sofrimento a céu aberto, mas os campos de concentração foram a expressão máxima da depravação humana escondida por trás de arame farpado. No verão de 1992, o mundo ficou chocado com as imagens de homens esqueléticos, aprisionados em campos como Omarska, Keraterm e Trnopolje. Tais imagens, que evocavam as piores memórias do Holocausto, revelaram a verdadeira natureza da campanha sérvia: não uma guerra por território, mas uma campanha de extermínio.
Kemal Pervanic, um sobrevivente do notório campo de Omarska, descreve as condições desumanas: “muito pouca comida, sem espaço para sentar, e apenas dois banheiros para mil pessoas”. O mais aterrorizante, contudo, era a familiaridade do mal. “Um dos guardas era meu ex-professor de línguas, outro era um ex-colega de classe”, relata ele. A violência era onipresente. “Muitas vezes as pessoas eram retiradas e torturadas. Algumas nunca mais voltavam”. Para sobreviver, Kemal teve que suprimir suas emoções, tornando-se capaz de “assistir alguém sendo abatido como um porco sem chorar”.
Além da tortura e do assassinato, os campos foram palco de uma violência sexual sistemática e brutal. Estima-se que entre 20.000 e 50.000 mulheres, a maioria bósnias muçulmanas, foram estupradas durante a guerra. Em locais como Višegrad e Foča, hotéis e ginásios foram transformados em “campos de estupro”, onde mulheres e meninas eram mantidas como escravas sexuais. O estupro não foi um subproduto da guerra, mas uma arma deliberada, usada para aterrorizar, humilhar e destruir o tecido social de uma comunidade, uma ferramenta de limpeza étnica tão eficaz quanto as balas.
Srebrenica: O Auge do Genocídio na Guerra da Bósnia

Vala comum em Srebrenica, exumada em 2007. Foto: Adam Jones
Em julho de 1995, a crueldade da guerra atingiu seu ápice no enclave de Srebrenica, uma área declarada “segura” pelas Nações Unidas. Em poucos dias, as forças sérvias bósnias, sob o comando do General Ratko Mladić, sistematicamente assassinaram mais de 8.000 homens e meninos bósnios muçulmanos. O Massacre de Srebrenica, foi o maior assassinato em massa na Europa desde a Segunda Guerra Mundial e foi formalmente classificado como genocídio pelo Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia.
As cenas de Srebrenica são um testemunho da falha da comunidade internacional. Pais se despedindo de seus filhos, homens sendo separados de suas famílias e levados para a morte, e os capacetes azuis da ONU, em número insuficiente e com um mandato fraco, assistindo impotentes.
A queda de Srebrenica não foi apenas uma tragédia bósnia; foi uma vergonha global, um momento em que a promessa de “nunca mais” soou vazia. A conexão entre a política de limpeza étnica que varreu a Bósnia e o clímax genocida em Srebrenica é direta e inegável. Srebrenica foi a consequência lógica de uma ideologia de ódio que foi autorizada a crescer sem controle.
Crimes de Guerra e Contra a Humanidade

Enterro em massa de vítimas da Guerra da Bósnia em uma vala coletiva. Dezenas de corpos envoltos em sacos brancos e plásticos são colocados lado a lado em uma trincheira cavada em campo aberto, enquanto investigadores forenses e trabalhadores documentam e supervisionam o processo. O código “PR-261” visível no canto inferior direito sugere que esta é uma fotografia de arquivo forense, provavelmente parte de investigações de crimes de guerra. Cada saco branco representa uma vida interrompida, uma família destruída, uma história não contada. A vila pacífica ao fundo contrasta brutalmente com o horror da vala coletiva em primeiro plano
Durante a Guerra da Bósnia (1992-1995), estima-se que 100.000 pessoas foram mortas, e milhares de corpos foram enterrados em valas coletivas. Algumas valas foram criadas por perpetradores tentando ocultar evidências de massacres, outras criadas por autoridades locais sobrecarregadas pela quantidade de mortos. Após o fim da guerra, o processo de exumação, identificação e reenterro digno das vítimas tornou-se uma das tarefas mais dolorosas e complexas da transição pós conflito.
Comissão Internacional sobre Pessoas Desaparecidas (ICMP)
A Comissão Internacional sobre Pessoas Desaparecidas (ICMP) foi estabelecida em 1996 para ajudar a localizar e identificar pessoas desaparecidas. Até 2024, mais de 30.000 pessoas ainda estavam listadas como desaparecidas da Guerra da Bósnia e conflitos relacionados na ex-Iugoslávia. O processo de identificação é feito através de análise de DNA, comparando amostras de restos mortais com amostras de sangue de familiares. Equipes forenses exumam covas coletivas, catalogam cada fragmento ósseo, vestuário e pertences pessoais, e tentam reconstruir identidades de restos mortais frequentemente fragmentados e misturados.
Muitas vítimas foram enterradas em covas primárias, depois exumadas pelos perpetradores e redistribuídas em covas secundárias para dificultar a identificação (essa tática particularmente usada após o Massacre de Srebrenica). Isso significa que os restos de uma única pessoa podem estar espalhados por múltiplos locais, tornando a identificação ainda mais complexa. Muitas mães, esposas e filhas de desaparecidos morreram antes de descobrir o destino de seus entes queridos. Algumas enterraram apenas fragmentos.
Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (ICTY)
O Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (ICTY) processou 161 indivíduos por crimes cometidos durante as Guerras Iugoslavas, incluindo genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra. Líderes políticos e militares de alto escalão foram condenados:
- Radovan Karadžić (líder político sérvio bósnio) foi condenado a prisão perpétua por genocídio em Srebrenica e crimes contra a humanidade;
- Ratko Mladić (comandante militar sérvio bósnio) foi condenado a prisão perpétua por genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra.
- Slobodan Milošević (presidente da Sérvia) morreu em 2006 antes da conclusão de seu julgamento.
Guerra da Bósnia: Legado de um Conflito Esquecido
A guerra terminou oficialmente com o Acordo de Dayton em 1995, que dividiu a Bósnia e Herzegovina em duas entidades: a Federação da Bósnia e Herzegovina (croata-muçulmana) e a Republika Srpska (sérvia). O acordo trouxe a paz, mas cimentou as divisões étnicas que a guerra havia criado. Hoje, a Bósnia é um país que ainda luta com as cicatrizes do passado. O trauma é visível nas cidades reconstruídas, nos cemitérios que pontilham a paisagem e nos corações de uma geração que cresceu em meio ao terror.
Três décadas após o genocídio, a luta pela memória e contra a negação continua a ser uma batalha diária na Bósnia e Herzegovina e nos Balcãs. Enquanto as Mães de Srebrenica e outras associações de vítimas se esforçam incansavelmente para manter viva a memória dos mortos e encontrar os restos mortais dos desaparecidos, o revisionismo histórico e a glorificação de criminosos de guerra persistem em algumas esferas políticas e sociais da região.
A Guerra da Bósnia é um lembrete sombrio de que a civilização é uma fina camada que pode ser facilmente rompida. Ela nos ensina que o genocídio não é um ato espontâneo de loucura, mas o resultado de uma ideologia de ódio, da desumanização do “outro” e da indiferença daqueles que têm o poder de intervir. Esquecer a Bósnia é arriscar repetir seus erros. Lembrar é honrar as vítimas e reafirmar nosso compromisso com a humanidade, para que o coração da Europa nunca mais seja consumido pelas chamas do ódio.
Referências Bibliográficas
- “Survivor Stories.” Remembering Srebrenica. https://srebrenica.org.uk/category/survivor-stories.
- “Kemal Pervanic.” The Forgiveness Project. https://www.theforgivenessproject.com/stories-library/kemal-pervanic/.
- “Notes from a War-Torn Childhood in Bosnia.” Think Global Health. https://www.thinkglobalhealth.org/article/notes-war-torn-childhood-bosnia.
- “Sexual Violence in Bosnia.” Remembering Srebrenica. https://srebrenica.org.uk/what-happened/sexual-violence-bosnia.
- “Massacre de Srebrenica.” Geomagno. https://geomagno.com/massacre-de-srebrenica/.
- “Bosnia-Herzegovina Timeline.” BBC News.
- Finlan, Alastair. The Collapse of Yugoslavia: 1991–99. Osprey Publishing, 2004. https://archive.org/details/collapseofyugosl00alas.











Sou pesquisador independente comprometido com uma investigação profunda sobre geopolítica, história e memória visual. Fui coordenador do Imagens Históricas, que chegou a ser o maior projeto independente do Brasil no biênio 2012-2014, com mais de 1 milhão de seguidores apenas no Facebook. Acredito que compreender o passado com profundidade é uma forma de decifrar o presente e antecipar o futuro. Criei o GeoMagno como um espaço para explorar conexões culturais esquecidas, fatos relevantes e os impactos silenciosos dos grandes acontecimentos sobre a nossa identidade coletiva. Entre arquivos, documentos e narrativas visuais, busco transformar história em uma experiência acessível, rica em contexto e livre de revisionismo e simplificações.