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João Paulo II: O Discurso Que Despertou a Polônia e Derrubou um Império

O Papa João Paulo II no altar improvisado na Praça da Vitória, discursando para a multidão massiva. Durante esta missa, o Papa proferiu uma das homilias mais importantes de seu pontificado. 2 de junho de 1979.

Em junho de 1979, a Polônia era uma nação em suspenso, um país católico acorrentado por mais de três décadas a um regime comunista ateu imposto por Moscou. O ar estava pesado com a resignação de um povo censurado, desencorajado e vigiado. Contudo, sob a superfície cinzenta da vida cotidiana, uma faísca de esperança se recusava a apagar. Nesse contexto, a figura do Papa João Paulo II se mostraria importante para entrar nos corações e mentes dos poloneses.

O filho mais ilustre daquela terra, Karol Wojtyła, havia sido eleito Papa oito meses antes, e agora, contra todas as probabilidades e para o terror do governo, ele estava voltando para casa. Não como um cidadão comum, mas como João Paulo II, o líder espiritual de centenas de milhões. A visita era um risco calculado para o regime, que temia o poder de um homem cuja única arma era a fé.  Destarte, não poderiam estar mais certos. Aqueles nove dias de junho não seriam apenas uma peregrinação; seriam o estopim de uma revolução que mudaria o curso da história.

Confronto Silencioso: Um Papa em Terra Hostil

A decisão de permitir a visita papal foi uma aposta desesperada do regime comunista polonês, liderado por Edward Gierek. As autoridades esperavam que, ao controlar a cobertura da mídia e limitar o acesso, pudessem usar a visita para legitimar seu próprio poder. Contudo, foi um erro de cálculo monumental. Desde o momento em que o avião da LOT Polish Airlines pousou em Varsóvia no dia 2 de junho de 1979, ficou claro quem realmente governava os corações poloneses.

Ao som de todos os sinos das igrejas do país, João Paulo II desceu a escada, ajoelhou-se e beijou o solo de sua pátria. O gesto, transmitido ao vivo, foi uma poderosa declaração de fé e identidade, um ato de lealdade a uma autoridade superior à do Partido Comunista. A recepção oficial, liderada pelo chefe de Estado Henryk Jabłoński, foi fria e protocolar, um contraste gritante com a explosão de alegria que o aguardava nas ruas.

Praça da Vitória: O Palco da História

João Paulo II discursa para uma multidão na Praça da Vitória no dia 2 de junho de 1979.

João Paulo II discursa para uma multidão na Praça da Vitória no dia 2 de junho de 1979.

Às 16 horas, sob um calor sufocante de 32°C, João Paulo II chegou à Praça da Vitória, um local carregado de simbolismo, onde se encontrava o Túmulo do Soldado Desconhecido, um memorial aos heróis que morreram pela liberdade da Polônia. Cerca de 300.000 pessoas o aguardavam, muitas tendo esperado por horas. No centro da praça, uma imensa cruz de madeira com 11 metros de altura desafiava o ateísmo oficial do Estado. Foi ali, diante daquela multidão compacta e emocionada, que o Papa iniciou a Santa Missa. A atmosfera era elétrica.

Durante a homilia, em um dos momentos mais espontâneos e reveladores da história do século XX, a multidão, unida como um só corpo, começou a cantar um antigo hino de resistência: “Chcemy Boga!” (“Nós Queremos Deus!”). O grito ecoou pela praça, uma afirmação coletiva de identidade que o regime tentara apagar por trinta anos.

“Não Tenham Medo”: A Centelha da Revolução

"Niech zstąpi Duch Twój! Niech zstąpi Duch Twój! I odnowi oblicze ziemi. Tej ziemi! Amen. (Deixe o seu Espírito descer! Deixe o seu Espírito descer! E renovai a face desta terra. A face desta terra!"). Foto: Italo Magno Jau. 2012.

“Niech zstąpi Duch Twój! Niech zstąpi Duch Twój! I odnowi oblicze ziemi. Tej ziemi! Amen. (Deixe o seu Espírito descer! Deixe o seu Espírito descer! E renovai a face desta terra. A face desta terra!”). Foto: Italo Magno Jau. 2012.

O clímax do discurso veio com suas palavras finais, uma oração que se tornaria o manifesto de uma geração. Com a voz embargada de emoção, o Papa polonês clamou: “E eu choro – eu que sou um filho da terra da Polônia e que sou também o Papa João Paulo II – Eu choro de todos os abismos deste milênio, eu choro na vigília de Pentecostes: deixe o seu Espírito descer! Deixe o seu Espírito descer! E renovai a face da terra. A face desta terra!”.

A última frase, “Tej ziemi!” (“Desta terra!”), foi enfatizada com uma força que penetrou a alma da nação. O que se seguiu foi uma explosão catártica. A multidão irrompeu em aplausos que duraram, segundo testemunhas, cerca de 14 minutos ininterruptos. Milhares choravam abertamente. Não era apenas um aplauso; era um rugido de liberdade, um despertar coletivo. Como disse o biógrafo George Weigel, naquele momento todos entenderam que “a Polônia não era um país comunista; era uma nação católica sobrecarregada com um estado comunista”. A mentira havia sido exposta.

Despertar de uma Nação e a Queda de um Império

Foto icônica do Papa João Paulo II durante a missa histórica. Bettmann Archive. 2 de junho de 1979.

Foto icônica do Papa João Paulo II durante a missa histórica. Bettmann Archive. 2 de junho de 1979.

Naquela noite, a televisão estatal, controlada pelo governo, exibiu apenas alguns segundos da missa, com imagens manipuladas que evitavam mostrar a magnitude da multidão. Contudo, era tarde demais. Os milhões que estiveram lá, e os milhões que assistiram ao vivo, puderam comparar a realidade com a propaganda. A credibilidade do regime foi destruída em um único dia.

A visita de nove dias, que atraiu um total de 11 milhões de pessoas, funcionou como um censo espiritual, mostrando aos poloneses que eles não estavam sozinhos em sua oposição. O medo, a principal arma do totalitarismo, havia sido quebrado. Um ano depois, em agosto de 1980, o movimento sindical Solidariedade (Solidarność) nascia nos estaleiros de Gdańsk, liderado por Lech Wałęsa, que famosamente assinaria os acordos com o governo usando uma caneta com a imagem do Papa. A semente plantada na Praça da Vitória havia germinado.

Legado de João Paulo II: Uma Revolução da Consciência

Praça "Vitória" (Victory Square ou Plac Marszałka Józefa Piłsudskiego) - Inscrição encontrada sob os pés da cruz na Praça Vitória, em Varsóvia. Foto: Italo Magno Jau. 2012.

Praça “Vitória” (Victory Square ou Plac Marszałka Józefa Piłsudskiego) – Inscrição encontrada sob os pés da cruz na Praça Vitória, em Varsóvia. Foto: Italo Magno Jau. 2012.

A peregrinação de João Paulo II em 1979 é hoje amplamente reconhecida por historiadores como o catalisador que acelerou a queda do comunismo na Europa. O historiador de Yale, John Lewis Gaddis, afirmou que “quando João Paulo II beijou o chão no aeroporto de Varsóvia, ele começou o processo pelo qual o comunismo na Polônia – e, finalmente, em todos os lugares – chegaria ao fim”. A mensagem de coragem e identidade se espalhou para outras nações cativas do bloco soviético, como Lituânia, Tchecoslováquia e Ucrânia.

Dez anos depois, em 1989, a Polônia realizou as primeiras eleições parcialmente livres do bloco, e o Muro de Berlim caiu. A “revolução sem sangue” que se seguiu foi, em essência, uma revolução da consciência, iniciada não por tanques ou exércitos, mas pelas palavras de um homem que ousou dizer a uma nação para não ter medo e a lembrou de sua verdadeira identidade. A face daquela terra foi, de fato, renovada.

Referências Bibliográficas

  1. Gaddis, John Lewis. The Cold War: A New History. Penguin Books, 2006. https://www.penguinrandomhouse.com/books/293667/the-cold-war-by-john-lewis-gaddis/.
  2. Weigel, George. Witness to Hope: The Biography of Pope John Paul II. Harper Perennial, 2005. https://www.harpercollins.com/products/witness-to-hope-george-weigel.
  3. Mazurczak, Filip. “First Visit to Poland Led to Iron Curtain’s Fall, Historians Say 45 Years after St. John Paul II Landmark Trip.” Detroit Catholic, 31 May 2024. https://www.detroitcatholic.com/news/first-visit-to-poland-led-to-iron-curtains-fall-historians-say-45-years-after-st-john-paul-ii-landmark-trip.
  4. Chern, Jim. “WE WANT GOD.” Homily on the Spot, 22 Jan. 2022. https://homilyonthespot.com/2022/01/22/we-want-god/.
  5. Warsaw Rising Museum (Muzeum Powstania Warszawskiego). Warsaw. Museum visit, July 2012. https://www.1944.pl/en.
03/10/2025

"Não tenham medo!" Com essa mensagem, João Paulo II desafiou o regime comunista em 1979. Veja como sua visita à Polônia iniciou uma revolução.

Italo Magno Jau

Sou pesquisador independente comprometido com uma investigação profunda sobre geopolítica, história e memória visual. Fui coordenador do Imagens Históricas, que chegou a ser o maior projeto independente do Brasil no biênio 2012-2014, com mais de 1 milhão de seguidores apenas no Facebook. Acredito que compreender o passado com profundidade é uma forma de decifrar o presente e antecipar o futuro. Criei o GeoMagno como um espaço para explorar conexões culturais esquecidas, fatos relevantes e os impactos silenciosos dos grandes acontecimentos sobre a nossa identidade coletiva. Entre arquivos, documentos e narrativas visuais, busco transformar história em uma experiência acessível, rica em contexto e livre de revisionismo e simplificações.