Para compreender a magnitude do Massacre de Srebrenica, é imperativo retroceder ao turbulento cenário da península balcânica no início da década de 1990. A antiga Iugoslávia, um mosaico de etnias e religiões mantido sob o pulso firme do regime comunista, começou a se desintegrar após a morte de seu líder, Josip Broz Tito, em 1980. O vácuo de poder, somado a uma severa crise econômica, abriu espaço para a ascensão de discursos nacionalistas inflamados.
Em 1991, Croácia e Eslovênia declararam sua independência, desencadeando um efeito dominó que chegaria inevitavelmente à Bósnia e Herzegovina, uma república com uma população etnicamente diversa, composta majoritariamente por bósnios muçulmanos (bosníacos), croatas católicos e sérvios ortodoxos. Em março de 1992, após um referendo boicotado pela maioria dos sérvios bósnios, a Bósnia e Herzegovina também declarou sua independência, um ato que acendeu o estopim para uma das guerras mais brutais da história europeia.
O Maior Genocídio em Solo Europeu Desde a Segunda Guerra Mundial
O Massacre de Srebrenica é considerado por várias autoridades ocidentais e grupos de Direitos Humanos como o pior crime de guerra ocorrido na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, vez que o número de vítimas civis é superior a 8.000 pessoas, a maioria de adulto e meninos bósnios do sexo masculino muçulmanos. O Tribunal Penal Internacional para a antiga Jugoslávia (TPIJ) e o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) classificaram formalmente estes acontecimentos como um ato de genocídio, uma decisão que solidificou a gravidade do massacre no direito internacional e na memória coletiva da humanidade.
A “Cidade Refúgio” e o Grito de Ajuda Ignorado
Na tarde de 10 de julho de 1995, soldados do exército sérvio da Bósnia, sob o comando do General Ratko Mladić, iniciaram um ataque a Srebrenica, uma “cidade refúgio” criada pela Organização das Nações Unidas (ONU) para proteger civis deslocados pela guerra. Um oficial da ONU no local enviou uma mensagem desesperada à sede da ONU em Genebra:
“Urgente! Urgente! Urgente! O Exército Sérvio da Bósnia está entrando na cidade de Srebrenica. Será que alguém pode parar isso imediatamente e salvar essas pessoas? Milhares deles (civis) estão se reunindo ao redor do hospital. Por favor, ajudem.”
Ninguém impediu. De forma fria e metódica, os homens e meninos muçulmanos foram separados de suas famílias, levados aos milhares em caminhões para locais isolados perto do rio Drina, onde foram alinhados em fileiras e fuzilados. As execuções em massa ocorreram ao longo de vários dias em locais como armazéns, campos abertos e escolas, numa operação de extermínio cuidadosamente planejada e executada.
O Massacre de Srebrenica colocou em xeque na época a atuação nos Balcãs, tanto da ONU, quanto dos Estados Unidos e da OTAN (Aliança Militar do Tratado do Atlântico Norte). O genocídio foi realizado em um território sob proteção internacional, sendo considerado por muitas autoridades como o ponto baixo da política ocidental nos Balcãs.
A Inércia Cúmplice da Comunidade Internacional
O coronel Ton Karremans, comandante das forças de paz holandesas (Dutchbat), alertou os altos funcionários das Nações Unidas, no mês anterior, que haviam sinais claros de que os sérvios estavam preparando um ataque. Durante semanas, o exército sérvio intensificou o cerco sobre a cidade. A força de paz já estava enfraquecida, com poucos recursos e havia sofrido saques em carregamentos de suprimentos e munições. No dia 6 de julho, os bósnios sérvios bombardearam uma aldeia ao sul de Srebrenica e reforçaram suas posições na região.
No dia 7 de julho, os holandeses requisitaram um bombardeio com aviões da OTAN em posições de ataque sérvias, com o intuito de frear a ofensiva, contudo, a ONU rejeitou o pedido. A justificativa para a recusa foi a complexidade do processo de autorização e o temor de que uma ação aérea pudesse escalar o conflito e colocar em risco as forças de paz, além de não querer prejudicar os esforços diplomáticos de Carl Bildt, negociador europeu que acabara de chegar à região.
A Queda de Srebrenica e a Falha Catastrófica da OTAN
No dia 9 de julho, o general Herve Gobillard enviou um fax ao general sérvio Ratko Mladić alertando sobre as graves consequências que o exército sérvio enfrentaria caso não cessasse o ataque contra a área de segurança. Foi totalmente ignorado. Na manhã seguinte, 10 de julho, um único tanque e cerca de 100 soldados de infantaria sérvios aproximaram-se do bloqueio holandês, sendo rechaçados sob uma chuva de metralhadores calibre .50. Novamente, as forças de paz holandeses deram um ultimato a Mladić e solicitaram um ataque aéreo ao alto comando, ambos sem êxito.
No dia 11 de julho, milhares de soldados de infantaria sérvios flanquearam os veículos blindados holandeses e entraram na cidade. O ataque aéreo enfim foi autorizado pela ONU, mas era tarde demais. Apenas dois caças F-16 holandeses e dois F/A-18 americanos conseguiram realizar uma única passagem, lançando bombas sobre tanques sérvios e danificando um deles. A ação foi imediatamente interrompida quando Mladić ameaçou matar 32 soldados de paz holandeses que mantinha como reféns e bombardear o complexo da ONU em Potočari, onde milhares de civis se refugiavam. A ameaça surtiu efeito, e a OTAN suspendeu o contra-ataque, selando o destino de Srebrenica.
O Encontro de Karremans e Mladić

No dia 12 de julho de 1995, Ratko Mladic toca em garoto muçulmano e garante às forças de paz da ONU que a população de Srebrenica estaria segura. Agência AP.
Ao cair da noite, o general Mladić se reuniu com o coronel Karremans. De acordo com testemunhas oculares, o general ordenou a um de seus homens para que cortasse a garganta de um porco e declarou: “Isto é o que nós vamos fazer com os muçulmanos”. O relatório oficial de Karremans não fez menção à ameaça do general sérvio, mas no mesmo é revelado que o coronel dizia não ser capaz de defender aquelas pessoas. Este encontro simbolizou a humilhação e a impotência das forças de paz da ONU diante da agressão sérvia.
A Marcha da Morte e a Separação
Cerca de 15.000 pessoas, a maioria homens, foram reunidos nos arredores de Srebrenica e forçados a marcharem durante a madrugada, numa tentativa desesperada de alcançar território seguro. A coluna, conhecida como a “marcha da morte”, estendia-se por quilômetros e foi implacavelmente caçada por forças sérvias em emboscadas, resultando na morte de milhares. Enquanto isso, no acampamento de Potočari, mulheres, crianças e idosos eram aterrorizados. Algumas mulheres foram sequestradas e estupradas por soldados sérvios.
Na manhã de quarta-feira, dia 12, um comboio com cerca de 40 caminhões e ônibus chegou ao acampamento. Grupos de homens e meninos em idade militar foram sistematicamente separados das mulheres e crianças. Os refugiados supostamente seriam levados para território seguro, segundo afirmava no local o próprio Mladić, numa encenação macabra para as câmeras de televisão.
Testemunhos do Horror
Christina Schmidt, uma enfermeira de origem alemã, liderou uma equipe dos Médicos Sem Fronteiras em Srebrenica. Ela enviou seu relato por rádio para o escritório de Belgrado de sua organização, que transmitiu para a imprensa mundial.
“Todo mundo deveria sentir a violência nos rostos dos soldados do exército sérvio bósnio direcionando as pessoas como animais para os ônibus. Todo mundo que poderia ter impedido esse êxodo em massa deveria ser forçado a sentir o pânico e o desespero do povo.”
Dentre outras sandices que presenciou, Christina Schmidt também relatou o desespero de um pai que foi até ela com um bebê de um ano de idade, chorando. O pai seria levado pelo exército sérvio e não teria ninguém para cuidar de seu filho. Schmidt enxergou nos olhos daquele homem a expressão de alguém que nunca mais veria seu filho novamente.
Os refugiados que resolveram fugir a pé pelas florestas, eram caçados por soldados sérvios e tinham suas gargantas cortadas. Ninguém sabe exatamente quantas pessoas morreram no Massacre de Srebrenica. Analistas estimam um número de superior a 8.000 pessoas, principalmente de homens e meninos. As valas comuns, descobertas nos anos seguintes, revelaram a escala industrial do massacre. Para esconder os crimes, os corpos foram posteriormente desenterrados com retroescavadeiras e movidos para valas secundárias e até terciárias, dificultando a identificação das vítimas e o luto de suas famílias. Ratko Mladić, o “Carniceiro da Bósnia”, foi preso em 26 de maio de 2011 em Lazarevo, na Sérvia, após 16 anos foragido.
Os Julgamentos por Genocídio

Vala comum em Srebrenica, exumada em 2007. Foto: Adam Jones
No rescaldo do massacre, a busca por justiça tornou-se uma prioridade para a comunidade internacional. O Tribunal Penal Internacional para a antiga Jugoslávia (TPIJ), sediado em Haia, desempenhou um papel central na responsabilização dos perpetradores. Em 2001, o general Radislav Krstić, um dos comandantes do Corpo Drina do exército sérvio-bósnio, tornou-se a primeira pessoa a ser condenada por genocídio pelo TPIJ. A sua condenação foi um marco, estabelecendo um precedente legal crucial.
Anos mais tarde, os principais arquitetos do genocídio, Radovan Karadžić, o líder político dos sérvios da Bósnia, e o General Ratko Mladić, foram finalmente capturados e levados a julgamento. Ambos foram condenados por genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra, recebendo sentenças de prisão perpétua. O TPIJ indiciou um total de 20 indivíduos por crimes cometidos em Srebrenica, resultando em 14 condenações que ajudaram a construir uma narrativa judicial detalhada e irrefutável dos acontecimentos.
Legado de Srebrenica
O fracasso abjeto da comunidade internacional em prevenir o genocídio em Srebrenica, assim como em Ruanda um ano antes, provocou uma profunda reflexão sobre os mecanismos de segurança coletiva e a soberania estatal. Srebrenica tornou-se o doloroso catalisador para uma mudança de paradigma no direito internacional, enfatizando a primazia da vida humana sobre as fronteiras políticas.
Deste exame de consciência nasceu a doutrina da “Responsabilidade de Proteger” (R2P), formalmente adotada pela Assembleia Geral da ONU em 2005. Este princípio inovador postula que a soberania não é um direito absoluto, mas uma responsabilidade, e que se um Estado falha em proteger a sua própria população de atrocidades em massa (genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade), a comunidade internacional tem a responsabilidade de intervir.
A Responsabilidade da Holanda
No dia 6 de setembro de 2013, a Suprema Corte Holandesa declarou que a Holanda foi responsável pela morte de três homens muçulmanos bósnios, vez que os boinas azuis (forças de paz holandesas) arbitrariamente haviam ordenado a esses homens que deixassem o complexo das Nações Unidas durante o Massacre de Srebrenica. Esta decisão foi posteriormente expandida em 2019, quando o mesmo tribunal considerou o Estado holandês parcialmente responsável (em 10%) pelas mortes de cerca de 350 homens que foram expulsos da base da ONU em Potočari e subsequentemente assassinados pelas forças sérvias.
A decisão, embora controversa, abriu um precedente importante sobre a responsabilidade dos Estados que contribuem com tropas para missões de paz. Segundo a advogada das vítimas, Liesbeth Zegveld, a decisão foi um avanço porque “estabelece que as forças de paz da ONU não podem operar em um vácuo legal, onde não há prestação de contas ou reparação para as vítimas”.
Mães de Srebrenica

Uma mulher bósnia muçulmana segura a fotografia de seu filho desaparecido, um dos milhares de homens e meninos mortos no genocídio de Srebrenica em julho de 1995. A imagem, em preto e branco, captura a dor e a busca por justiça das “Mães de Srebrenica”, uma associação de mulheres que perderam seus entes queridos no massacre.
As “Mães de Srebrenica” tornaram-se um símbolo poderoso da busca por justiça e verdade após o genocídio. Essas bravas e corajosas mulheres, muitas delas viúvas que perderam não apenas filhos, mas também maridos, irmãos e pais, dedicaram suas vidas a encontrar os restos mortais de seus entes queridos e a garantir que os responsáveis fossem levados à justiça.
Organizações como a Associação das Mães de Srebrenica e Žepa lutaram incansavelmente por décadas. Elas pressionaram por exumações de covas coletivas, identificação de restos mortais através de DNA, julgamentos de criminosos de guerra, e reconhecimento internacional do genocídio. Muitas dessas mães morreram antes de encontrar os restos de seus filhos. Algumas enterraram apenas fragmentos. Outras ainda esperam, décadas depois, por qualquer notícia.
O processo de identificação é lento e doloroso. Mais de 8.000 homens e meninos foram executados em Srebrenica, seus corpos enterrados em covas coletivas que foram posteriormente escavadas e os restos redistribuídos em covas secundárias para ocultar evidências. Isso significa que os restos de uma única pessoa podem estar espalhados por múltiplos locais.
Até 2024, mais de 7.000 vítimas foram identificadas, mas centenas ainda aguardam identificação. A fotografia que esta mãe segura é provavelmente de antes da guerra: um jovem sorridente, cheio de vida e futuro. Essas fotografias tornaram-se relíquias sagradas, carregadas em protestos, exibidas em memoriais, seguradas em vigílias. Essa imagem se lembra que cada estatística dos “8.372 mortos em Srebrenica”, representa uma pessoa real, com família, identidade, nome, rosto e, acima de tudo, sonhos que foram interrompidos.
Memorial e Cemitério de Srebrenica-Potočari

O Memorial e Cemitério de Srebrenica-Potočari, onde mais de 6.600 vítimas identificadas do genocídio de julho de 1995 foram enterradas. Esta vista panorâmica captura a magnitude visual do horror: milhares de lápides brancas de mármore se estendem em fileiras perfeitamente alinhadas sobre o gramado verde, contrastando com as montanhas verdejantes dos Bálcãs ao fundo.
O Memorial e Cemitério de Srebrenica-Potočari, onde mais de 6.600 vítimas identificadas do genocídio de julho de 1995 foram enterradas. Trata-se mesma paisagem que testemunhou um dos piores crimes contra a humanidade em solo europeu desde a Segunda Guerra Mundial. O memorial está localizado no terreno da antiga fábrica de baterias de Potočari, que serviu como base das forças de paz holandesas da ONU durante o massacre.
As lápides são uniformes em design, mas as histórias por trás delas são devastadoramente únicas. A mais jovem vítima enterrada aqui tinha apenas 12 anos. Muitas lápides têm a mesma data de morte — 11, 12, 13 de julho de 1995 — marcando os dias em que execuções em massa ocorreram em locais como a escola de Kravica, o armazém de Kozluk e a represa de Petkovci. Algumas lápides têm apenas o ano de nascimento e “1995” como ano de morte, porque os restos mortais foram tão fragmentados que a data exata não pôde ser determinada.
Todos os anos, em 11 de julho, uma cerimônia memorial é realizada em Potočari, onde recém identificadas vítimas são enterradas. Famílias viajam de toda a Bósnia e do mundo para participar. Caixões cobertos com panos verdes (a cor do Islã) são carregados em procissão solene e enterrados enquanto orações são recitadas e lágrimas são derramadas. O complexo memorial inclui um museu, um muro com os nomes de todas as 8.372 vítimas identificadas até agora, e a “Galeria 11/07/95” com fotografias e pertences pessoais das vítimas.
Memória e Negação: A Luta Contínua
A negação do genocídio não apenas insulta a memória das vítimas, mas também impede a reconciliação genuína e ameaça a paz duramente conquistada. Lembrar Srebrenica, portanto, não é apenas um ato de homenagem, mas uma advertência perpétua. É um lembrete sombrio da capacidade humana para a barbárie e da responsabilidade coletiva de dizer “nunca mais”, não como um mero slogan, mas como um compromisso ativo e vigilante para com a humanidade.
Referências Bibliográficas
- “Bosnian War.” Britannica. https://www.britannica.com/event/Bosnian-War.
- “The Srebrenica Genocide: 20 Years On.” International Criminal Tribunal for the Former Yugoslavia. https://www.icty.org/x/file/Outreach/view_from_hague/jit_srebrenica_en.pdf.
- Human Rights Watch. The Fall of Srebrenica and the Failure of U.N. Peacekeeping. Human Rights Watch. https://www.hrw.org/report/1995/10/15/fall-srebrenica-and-failure-un-peacekeeping/bosnia-and-herzegovina.
- “ICTY Remembers: The Srebrenica Genocide (1995–2015).” United Nations International Residual Mechanism for Criminal Tribunals. https://www.irmct.org/specials/srebrenica20/.
- “Responsibility to Protect.” United Nations. https://www.un.org/en/genocide-prevention/responsibility-protect/about.
- “Massacre in Bosnia; Srebrenica: The Days of Slaughter.” The New York Times. https://www.nytimes.com/1995/10/29/world/massacre-in-bosnia-srebrenica-the-days-of-slaughter.html.
- “Dutch Peacekeepers Are Found Responsible for Deaths.” The New York Times. https://www.nytimes.com/2013/09/07/world/europe/dutch-peacekeepers-are-found-responsible-for-deaths.html.











Sou pesquisador independente comprometido com uma investigação profunda sobre geopolítica, história e memória visual. Fui coordenador do Imagens Históricas, que chegou a ser o maior projeto independente do Brasil no biênio 2012-2014, com mais de 1 milhão de seguidores apenas no Facebook. Acredito que compreender o passado com profundidade é uma forma de decifrar o presente e antecipar o futuro. Criei o GeoMagno como um espaço para explorar conexões culturais esquecidas, fatos relevantes e os impactos silenciosos dos grandes acontecimentos sobre a nossa identidade coletiva. Entre arquivos, documentos e narrativas visuais, busco transformar história em uma experiência acessível, rica em contexto e livre de revisionismo e simplificações.