Com a quebra do pacto Ribbentrop-Molotov durante a Segunda Guerra Mundial, deu-se início à operação Barbarossa, codinome da maior campanha militar da história em termos de mobilização de tropas e baixas sofridas. Em janeiro de 1942, o fotógrafo soviético Dmitri Baltermants capturou uma imagem devastadora perto de Kerch, na Crimeia, mostrando pessoas chorando ao lado de corpos de seus entes queridos no chão (foto de capa). Contudo, essa dor, frequentemente associada apenas ao povo russo, foi uma agonia compartilhada por dezenas de nacionalidades.
A narrativa da “Grande Guerra Patriótica” como um triunfo exclusivamente russo apaga a memória de milhões de ucranianos, bielorrussos, cazaques, uzbeques e tantos outros que compunham a União Soviética e que, em muitos casos, sofreram perdas ainda mais devastadoras.
Operação Barbarossa: O Início das Perdas pelos Soviéticos
Na madrugada do dia 22 de junho de 1941, mais de três milhões de soldados alemães cruzaram a fronteira soviética. O avanço alemão em território que hoje pertence a Bielorússia, Ucrânia e Rússia foi rápido e avassalador. Em poucos dias, a Força Aérea Soviética havia sido praticamente dizimada (a maioria dos aviões foram destruídos ainda em solo) e os blindados soviéticos em formação dispersa não foram páreos para a formação Blitzkrieg alemã. Em pouco tempo a Operação Barbarossa tornou-se uma questão de sobrevivência para os soviéticos.
Nenhum país, nenhum povo, lutou tanto quanto a União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial. Em nenhum outro lugar as memórias da guerra permaneceram tão vivas e tão profundas. A invasão alemã trouxe uma tal catástrofe, que parecia, a princípio, que nenhuma nação suportaria. Tão somente no cerco a Leningrado, que durou mais de dois anos, morreram mais seres humanos do que americanos e britânicos durante toda a guerra.
Uma Tragédia Multinacional: Desconstruindo os Números
A cifra de “27 milhões de mortos soviéticos mortos” é frequentemente citada, contudo, raramente detalhada. Uma análise mais aprofundada revela uma realidade muito mais complexa e multinacional. Embora a Rússia tenha sofrido o maior número absoluto de perdas, com quase 14 milhões de mortos, outras repúblicas sofreram de forma desproporcionalmente mais intensa. A Bielorrússia, por exemplo, perdeu espantosos 25,3% de sua população pré-guerra, a maior taxa de mortalidade de qualquer nação no conflito. A Ucrânia, por sua vez, perdeu 16,3% de sua população, com um total de 6,85 milhões de mortos, superando em muito os 12,7% da Rússia.
Essa disparidade se explica, em parte, pela geografia da invasão. A totalidade dos territórios da Bielorrússia e da Ucrânia foi ocupada e transformada em um sangrento campo de batalha, enquanto a ocupação alemã na Rússia, embora vasta, se concentrou em suas regiões ocidentais. Destarte, a política de extermínio nazista, o Generalplan Ost, visava especificamente os povos eslavos, tratando bielorrussos, russos e ucranianos com uma brutalidade calculada, resultando em um número colossal de vítimas civis que superou em muito as perdas militares em algumas regiões.
República Soviética – Mortes Totais – % da População (1940)
- Bielorrússia – 2.290.000 – 25,3%
- Ucrânia – 6.850.000 – 16,3%
- Letônia – 260.000 – 13,7%
- Armênia – 180.000 – 13,6%
- Lituânia – 375.000 – 12,7%
- Rússia – 13.950.000 – 12,7%
- Cazaquistão – 660.000 – 10,7%
- Outras Repúblicas – ~1.600.000 – ~8%
Exército Vermelho: Um Mosaico de Nações
A ideia de um Exército Vermelho puramente russo é um mito. Dos cerca de 34 milhões de homens e mulheres que serviram nas forças armadas soviéticas durante a guerra, aproximadamente 8 milhões (23,5%) eram de minorias não-eslavas. Em 1941, a composição étnica do exército era de aproximadamente 61% de russos, 20% de ucranianos, 4% de bielorrussos e 15% de outras nacionalidades, incluindo armênios, azeris, cazaques, georgianos, tártaros e uzbeques. Essa diversidade era o reflexo da própria União Soviética, um estado multinacional forjado a partir do antigo Império Russo.
As Faces do Exército Vermelho
Atrás dos números, existem rostos e histórias. A contribuição de cada nacionalidade foi vital e merece ser reconhecida individualmente.
Ucranianos

Lyudmila Mykhailivna Pavlichenko (1916-1974) foi uma franco-atiradora ucraniana do Exército Vermelho soviético durante a Segunda Guerra Mundial. Conhecida por seus inimigos como “Lady Death” (Senhora Morte), ela é reconhecida como a franco-atiradora mais bem-sucedida da história, com um total confirmado de 309 mortes inimigas.
Cerca de 7 milhões de ucranianos lutaram nas fileiras do Exército Vermelho, compondo quase um quarto de sua força total. Eles não apenas defenderam seu próprio solo, mas participaram de batalhas cruciais em Stalingrado, Kursk e na libertação de Berlim. As perdas militares refletem essa participação massiva: dos 8,6 milhões de soldados soviéticos mortos em combate, estima-se que 1,4 milhão eram ucranianos.
Nas estepes ucranianas, onde o trigo dourado uma vez ondulava ao vento, agora repousavam filhos e filhas que jamais veriam a colheita da paz. Cada aldeia ucraniana tinha suas próprias lágrimas, seus próprios órfãos, suas próprias viúvas que esperariam para sempre por um retorno que nunca viria.
Bielorrussos

Grupo de partisans bielorrussos durante a Segunda Guerra Mundial.
A Bielorrússia foi o epicentro da brutalidade nazista. Além dos 620.000 soldados mortos, o país viu 1,67 milhão de civis perecerem. A resistência bielorrussa foi lendária, com um dos maiores movimentos partisans da guerra. Mais de 374.000 partisans operaram nas florestas do país, sabotando linhas de suprimento alemãs e imobilizando divisões inteiras da Wehrmacht.
Os bielorussos pagaram um preço terrível: os nazistas destruíram mais de 5.000 aldeias bielorrussas em represália, muitas vezes queimando seus habitantes vivos. Nas florestas sombrias da Bielorrússia, onde os pinheiros sussurravam lamentos eternos, cada árvore parecia guardar a memória de uma família extinta, de uma criança que nunca cresceria, de um ancião que levou consigo as histórias de gerações.
Povos da Ásia Central

Fotografia em formato paisagem mostrando dois soldados do Exército Vermelho de origem centro-asiática (provavelmente cazaques ou uzbeques) em posição de combate. Os soldados usam capacetes soviéticos padrão e estão equipados com rifles e cinturões de munição. A imagem tem uma tonalidade azulada característica de fotos coloridas artificialmente da época.
As repúblicas da Ásia Central também deram uma contribuição significativa. Mais de 1,4 milhão de pessoas foram recrutadas do Uzbequistão, e quase 1,2 milhão do Cazaquistão. Cerca de 330.000 uzbeques e 310.000 cazaques morreram em combate. Esses soldados, muitas vezes com pouco treinamento e enfrentando barreiras linguísticas, lutaram bravamente em batalhas longe de suas casas, como na defesa de Moscou e no cerco de Leningrado. Nas vastas estepes do Cazaquistão, as mães cantavam canções de luto em línguas que os historiadores russos raramente mencionam, enquanto nas cidades do Uzbequistão, os bazares ficaram vazios de jovens que partiram para nunca mais voltar.
Expressão Poética das Perdas
Durante a Segunda Guerra Mundial, poetas soviéticos usaram sua arte para expressar as imensas perdas e o profundo sofrimento do povo soviético. Poemas como “Wait for Me” de Konstantin Simonov capturaram a angústia e a esperança dos soldados e de suas famílias. Escrito em 1941, tornou-se um símbolo de devoção e resiliência, evocando a promessa de retorno de um soldado à sua amada.
Além disso, Anna Akhmatova, em sua obra “Requiem“, lamentou a dor das mães e viúvas que perderam seus entes queridos, refletindo a tragédia pessoal e coletiva da guerra. Poemas como esses desempenharam um papel crucial em manter o moral e a solidariedade durante os anos de conflito.
Contudo, a poesia soviética da época não apenas documentou o sofrimento, mas também exaltou a bravura e o sacrifício dos combatentes. Aleksandr Tvardovsky, em seu poema épico “Vasily Tyorkin“, criou uma figura heroica que simbolizava o espírito indomável do soldado soviético comum. Esses poemas serviram para unir a nação em torno de um sentimento comum de perda e resistência.
A literatura poética também ajudou a preservar a memória das atrocidades e do heroísmo para as gerações futuras. A poesia da Segunda Guerra Mundial continua a ser uma poderosa ferramenta de reflexão sobre os custos humanos do conflito, destacando a importância de recordar e honrar aqueles que sacrificaram tudo.
Wait For Me – Konstantin Simonov
Apesar de estarem acostumados à inúmeras perdas durante toda guerra, os soviéticos não fingiam estar imunes à dor. Dezenas de milhares de pessoas conheciam o poema “Wait for Me”, de Konstantin Simonov, de cor:
Espera por mim, e regressarei,
Mas espera muito.
Espera até se encheres de pena
Enquanto vês a chuva amarela.
Espera até os ventos
Varrerem as neves.Espera no calor sufocante.
Espera até os outros desistirem
Quando esquecerem o Ontem.
Espera mesmo que não cheguem
Cartas de longe para você.
Espera mesmo quando os outros
Estiverem cansados de esperar.Espera mesmo quando a minha mãe
E o meu filho pensarem que morri.
E quando os amigos se sentarem
Bebendo em minha memória.
Espera, e não se apresses a beber
Em minha memória também.Espera, pois regressarei,
Desafiando cada morte.
E deixa aqueles que não esperaram
Dizer que tive sorte.
Eles nunca compreenderãoQue, no meio da morte,
Você, e a sua espera,
Me salvaram.Apenas você e eu saberemos
Como sobrevivi.
Foi porque você esperou por mim
Como mais ninguém o fez.
Do Not Call me, Father
O poema abaixo foi escrito em 1942, logo após Pavel Grigoryevich Antokolsky perder o filho de 18 anos durante a Segunda Guerra Mundial. Tornou-se um dos textos mais fortes da literatura soviética sobre a dor da guerra.
Não me chames, pai.
Não me procures.
Não me chames, não esperes meu regresso.
Estamos num caminho nunca trilhado,
O fogo e o sangue apagaram a estrada.Voamos, nas asas dos relâmpagos,
Nós, caídos, amigos de combate,
Para não mais desembainhar a espada.
Todos tombamos na batalha,
E não mais retornaremos.Haverá reencontro?
Não sei.
Sei apenas: a luta não terminou.
Somos grãos de areia no universo,
E nunca mais veremos a luz.Adeus, meu filho.
Adeus, minha consciência,
Minha juventude e minha consolação,
Meu único filho.Que esta despedida seja o fim
Da solidão imensa,
Pois não há solidão maior.
Lá permanecerás para sempre,
Longe da luz e do ar.Tua morte não será contada,
Não será diminuída nem suavizada,
Nunca mais ressuscitarás,
Para sempre um rapaz de dezoito anos.Adeus, então.
Nenhum comboio parte daquela região,
Nenhum avião pode lá chegar.
Adeus, meu filho,
Pois milagres não acontecem.E neste mundo
Os sonhos não se realizam.
Adeus.
Sonharei contigo ainda criança,
Dando passos firmes pela terra,
Essa terra já coberta de sepulturas.E esta canção, meu filho,
Chegou ao fim.
Uma Vitória Compartilhada, Uma Dor Incomensurável
A União Soviética foi salva pelos soldados e pelo povo. Mas na terra, sem chegarem a ver a paz, jaziam mais de 27 milhões de mortos. A vitória sobre a Alemanha Nazista no Front Oriental não foi um feito exclusivamente russo, mas uma conquista forjada pelo sangue, suor e lágrimas de dezenas de povos. Ucranianos, bielorrussos, cazaques, georgianos e tantos outros lutaram e morreram lado a lado, defendendo suas casas e contribuindo para um objetivo comum.
Reduzir essa epopeia de sofrimento e resiliência a uma narrativa nacionalista única é falhar em compreender a verdadeira dimensão da tragédia e a magnitude da vitória. Honrar a memória das vítimas soviéticas exige reconhecer e nomear todas elas.
Referências Bibliográficas
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- Merridale, Catherine. Ivan’s War: Life and Death in the Red Army, 1939–1945. Metropolitan Books, 2006. https://www.amazon.com/Ivans-War-Life-Death-1939-1945/dp/0805074554.
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- Brooks, Jeffrey. Thank You, Comrade Stalin!: Soviet Public Culture from Revolution to Cold War. Princeton University Press, 2000. https://www.jstor.org/stable/j.ctv1ddcxtg.
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Sou pesquisador independente comprometido com uma investigação profunda sobre geopolítica, história e memória visual. Fui coordenador do Imagens Históricas, que chegou a ser o maior projeto independente do Brasil no biênio 2012-2014, com mais de 1 milhão de seguidores apenas no Facebook. Acredito que compreender o passado com profundidade é uma forma de decifrar o presente e antecipar o futuro. Criei o GeoMagno como um espaço para explorar conexões culturais esquecidas, fatos relevantes e os impactos silenciosos dos grandes acontecimentos sobre a nossa identidade coletiva. Entre arquivos, documentos e narrativas visuais, busco transformar história em uma experiência acessível, rica em contexto e livre de revisionismo e simplificações.