Um casal de turistas espanhóis se mantém indiferente na areia da praia ao lado do corpo sem vida de um imigrante ilegal que havia se afogado durante um naufrágio. A foto intitulada “A Morte nos Portões do Paraíso” foi tirada pelo fotógrafo Javier Bauluz e venceu o prêmio Pulitzer, causando enorme polêmica na época, sob a leviana acusação de ter sido manipulada ou até mesmo montada. Diante do fato, o próprio Bauluz, irritado com as acusações, resolveu revelar toda a história por trás da foto.
A Verdadeira História Por Trás da Foto Intitulada “A Morte nos Portões do Paraíso”
Bauluz acompanhava o atendimento a imigrantes ilegais que haviam sido resgatados na costa espanhola da Andaluzia, depois do barco onde estavam naufragar no dia 2 de setembro de 2000. Os imigrantes, muitos deles encharcados e feridos, receberam atendimento em um centro esportivo da cidade. Muitos sobreviventes choravam e se ajoelhavam com as mãos para o céu, agradecendo por terem sobrevivido, segundo o próprio Javier Bauluz, que tirava algumas fotografias no local.
Pouco tempo depois, o fotógrafo recebeu uma ligação com a informação de que havia um cadáver na praia de Zahara, há 20 km dali, para onde se dirigiu prontamente. Por volta de 17 horas o fotógrafo chegou a praia, que ainda estava cheia, com pessoas banhando-se na água quente e aproveitando o forte sol do verão europeu. Quando Bauluz alcançou o outro extremo da praia, além de avistar um cameraman, jornalistas com cadernos na mão e outro fotógrafo, se espantou com a indiferença de um casal sentado debaixo do guarda-sol, a poucos metros de distância de onde se encontrava o corpo, e decidiu registrar o fato.
A Humanidade em um Saco Plástico
Junto ao corpo do imigrante, de origem africana, foi encontrado uma escova de dentes, uma escova de cabelo, uma nota de 5000 pesetas (antiga moeda espanhola), uma foto do Papa, um CD do Bob Marley e uma fita métrica. Segundo o próprio fotógrafo, o ignorado imigrante havia experimentado em vida o amor e sonhos, era filho de alguém, tinha sido um cristão que adorava Marley, pessoa limpa, pobre e trabalhador. A guarda civil também encontrou várias fotografias embrulhadas em um plástico. Várias delas de si mesmo e uma de seus prováveis pais, que nunca iriam saber o que aconteceu com o filho, que seria enterrado como indigente.
“O ignorado imigrante havia experimentado em vida o amor e sonhos, era filho de alguém, tinha sido um cristão que adorava Marley, pessoa limpa, pobre e trabalhador.”
Bauluz queria captar a imagem do cadáver do imigrante contrastando com a praia repleta de pessoas se divertindo, mas ao procurar o melhor ângulo, foi impedido por um guarda civil de concluir a foto, mesmo quando se identificou como jornalista. Javier se manteve no local por várias horas, acompanhando, inclusive, o trabalho da polícia local. Além disso, o fotógrafo também presenciou outras cenas de indiferença protagonizadas por turistas para com o corpo sem vida.
A Psicologia da Indiferença: O Efeito Espectador
A cena capturada por Bauluz é um exemplo do que os psicólogos sociais chamam de “Efeito Espectador” ou “Síndrome de Genovese“, em referência ao notório assassinato de Kitty Genovese em Nova York em 1964, onde múltiplos vizinhos ouviram seus gritos, mas ninguém interveio. A teoria, desenvolvida por John Darley e Bibb Latané, postula que a presença de outras pessoas inibe a nossa disposição para ajudar. Este fenômeno é alimentado por dois processos psicológicos principais: a difusão de responsabilidade e a ignorância pluralística.
A difusão de responsabilidade ocorre porque, em um grupo, a obrigação moral de agir não recai sobre um único indivíduo, mas se dilui entre todos os presentes. Cada espectador assume que outra pessoa irá intervir, ou que a responsabilidade de outra pessoa é maior. Na praia de Zahara, com dezenas de banhistas, jornalistas e até mesmo a guarda civil presentes, a responsabilidade individual de cada um para com o corpo na areia foi efetivamente pulverizada. O casal sob o guarda-sol poderia ter pensado “variás outras pessoas estão aqui, eles cuidarão disso” ou “a polícia já foi chamada”.
A ignorância pluralística, por sua vez, descreve a tendência de olharmos para os outros em uma situação ambígua para obter pistas sobre como devemos nos comportar. Se ninguém mais parece preocupado, concluímos que a situação talvez não seja uma emergência. Os turistas na praia, ao verem outros continuando a nadar e a tomar sol, podem ter interpretado a cena como algo “sob controle” ou “não da sua conta”, criando um ciclo de inação coletiva. A indiferença de um alimenta e valida a indiferença do outro, resultando em uma paralisia social chocante diante da tragédia.
O Mediterrâneo como Cemitério a Céu Aberto
A imagem capturada por Bauluz não é um evento isolado, mas o retrato de uma tragédia contínua. O Mar Mediterrâneo, berço de civilizações e destino de férias sonhado por muitos, transformou-se em uma das rotas migratórias mais mortais do mundo. Desde 2014, a Organização Internacional para as Migrações (OIM) registrou mais de 28.000 mortes e desaparecimentos nesta travessia desesperada em busca de segurança e uma vida melhor na Europa. Apenas em 2024, mais de 2.500 vidas foram perdidas em naufrágios silenciosos, longe dos olhos da maioria.
A Espanha, por sua posição geográfica, tornou-se um dos principais destinos, especialmente através da chamada Rota do Mediterrâneo Ocidental. A pressão migratória intensificou-se a partir de 1991, quando o país, alinhando-se às políticas da União Europeia, passou a exigir vistos para cidadãos de muitos países do Norte da África, empurrando milhares para a clandestinidade e para as mãos de traficantes de pessoas que os lançam ao mar em embarcações precárias.
A praia de Zahara, na Andaluzia, não era apenas um paraíso turístico; era, e continua sendo, um ponto de chegada para os que sobrevivem e um cemitério para os que perecem no caminho.
Javier Bauluz e o Dilema do Fotojornalista: Documentar ou Intervir? A
A ação de Bauluz levanta um debate ético central no fotojornalismo: o dever de documentar versus o impulso humano de intervir. Críticos, na época, questionaram por que ele não cobriu o corpo ou agiu de outra forma. Contudo, a ética do fotojornalismo, embora complexa, prioriza o testemunho. O papel do jornalista é registrar a realidade, por mais dura que seja, para que a sociedade possa confrontá-la. Como argumentado em debates sobre o tema, uma imagem poderosa pode ter um impacto muito maior e mais duradouro do que uma única ação individual.
Ao fotografar a cena, Bauluz não estava sendo insensível; ele estava cumprindo sua função de trazer à luz uma verdade inconveniente. A decisão de publicar uma imagem tão perturbadora envolve um cálculo ético entre o dano potencial (a dor da família, o choque do público) e o bem maior (a conscientização sobre uma crise humanitária). Neste caso, a imagem serviu como um catalisador para a discussão sobre a crise migratória e a desumanização dos migrantes, cumprindo um propósito jornalístico fundamental.
Javier Bauluz, além de ter recebido o prêmio Pulitzer, condecoração máxima da fotografia, conseguiu eternizar em um clique a indiferença de boa parte das pessoas para com o seu semelhante. Tirou várias fotografias no dia, segundo ele, com a intenção de tentar humanizar aquele cadáver no qual a maioria das pessoas não se importavam. A fotografia de Javier Bauluz transcendeu a polêmica inicial para se tornar um ícone da crise migratória global e um símbolo da “globalização da indiferença”, um termo cunhado pelo Papa Francisco.
Comentários do Autor
O artigo sobre a “Morte nos Portões do Paraíso” ilustra de forma chocante a indiferença humana: uma vida se esvai em um local público, e a reação dos transeuntes é mínima ou inexistente. Esse caso extremo serve como um paralelo sombrio para a indiferença que frequentemente observamos no cotidiano. A proximidade física entre indivíduos nem sempre resulta em empatia ou ação concreta. Com frequência, pessoas vulneráveis são ignoradas por quem passa ao lado, conflitos públicos são evitados como se fossem invisíveis; tragédias distantes, como a agressão russa à Ucrânia, despertam apatia generalizada, ilustrando apenas um dos muitos exemplos possíveis.
A imagem força o espectador a se confrontar com uma realidade desconfortável: a justaposição do lazer e do privilégio (o casal de turistas) com a morte e o desespero (o corpo do migrante). A cena registrada na imagem escancara uma falha recorrente na condição humana: a tendência a nos enclausurarmos em realidades pessoais, construindo barreiras invisíveis que nos separam da dor alheia. Mesmo após mais de duas décadas, a fotografia permanece dolorosamente atual — um lembrete silencioso e sombrio de que, para muitos, os chamados “portões do paraíso”, na verdade se revelam como antessalas da morte.
Referências Bibliográficas
- Bauluz, Javier. “Death at the Gates of Heaven.”
- “Mediterranean.” Missing Migrants Project (IOM). https://missingmigrants.iom.int/mediterranean.
- “A Decade after EU’s Migrant Crisis, Hundreds Still Dying in Mediterranean.” Reuters. https://www.reuters.com/world/europe/stranded-sea-decade-after-eus-migrant-crisis-hundreds-still-dying-mediterranean-2025-08-19/.
- “Bystander Effect in Psychology.” Simply Psychology. https://www.simplypsychology.org/bystander-effect.html.
- Darley, John M., and Bibb Latané. “Bystander Intervention in Emergencies: Diffusion of Responsibility.” Journal of Personality and Social Psychology, vol. 8, no. 4, pp. 377–383. https://doi.org/10.1037/h0025589.
- “Documenting Tragedy: The Ethics of Photojournalism.” NPR. https://www.npr.org/2012/12/06/166666261/documenting-tragedy-the-ethics-of-photojournalism.
- Human Rights Watch. Hidden Emergency: Migrant Deaths in the Mediterranean. Human Rights Watch. https://www.hrw.org/news/2012/08/16/hidden-emergency.











Sou pesquisador independente comprometido com uma investigação profunda sobre geopolítica, história e memória visual. Fui coordenador do Imagens Históricas, que chegou a ser o maior projeto independente do Brasil no biênio 2012-2014, com mais de 1 milhão de seguidores apenas no Facebook. Acredito que compreender o passado com profundidade é uma forma de decifrar o presente e antecipar o futuro. Criei o GeoMagno como um espaço para explorar conexões culturais esquecidas, fatos relevantes e os impactos silenciosos dos grandes acontecimentos sobre a nossa identidade coletiva. Entre arquivos, documentos e narrativas visuais, busco transformar história em uma experiência acessível, rica em contexto e livre de revisionismo e simplificações.