No coração da França, a aldeia de Oradour-sur-Glane permanece como uma ferida aberta na paisagem e na memória coletiva da Europa. Em 10 de junho de 1944, apenas quatro dias após os desembarques aliados na Normandia, um destacamento do 1º Batalhão do 4º Regimento Panzergrenadier da Divisão SS Das Reich perpetrou um dos massacres mais brutais e sistemáticos de civis na Europa Ocidental durante a Segunda Guerra Mundial.
Em poucas horas, 643 homens, mulheres e crianças foram assassinados, e sua aldeia, incendiada até as fundações. O que aconteceu em Oradour não foi um ato de guerra, mas uma demonstração de violência gratuita e desumanizadora, cuja justificativa permanece tão tênue quanto as cinzas que cobriram suas ruas.
A Vida em Oradour-sur-Glane Antes da Tragédia

Uma classe de meninos da escola de Oradour-sur-Glane. Todos os que aparecem na foto foram mortos durante o massacre de 10 de junho de 1944.
O sábado de 10 de junho de 1944 começou como qualquer outro em Oradour-sur-Glane. A aldeia, situada na região de Limousin, era um refúgio de tranquilidade em meio à turbulência da França ocupada. Seus habitantes, incluindo refugiados de outras partes da França e da Espanha que ali buscaram paz, viviam uma rotina pacífica. As crianças frequentavam a escola, os agricultores trabalhavam nos campos e os comerciantes abriam suas lojas.
Naquela manhã, a distribuição de tabaco atraiu muitos moradores ao centro da aldeia, um detalhe mundano que, tragicamente, facilitaria a ação dos perpetradores. Ninguém poderia imaginar que aquelas horas de normalidade seriam as últimas, que o som dos risos infantis e das conversas cotidianas seria substituído pelo crepitar das chamas e o eco das armas.
A Chegada da Divisão Das Reich: O Início do Fim
Por volta das 14 horas, cerca de 120 a 200 soldados da Waffen-SS, sob o comando do SS-Sturmbannführer (Major) Adolf Diekmann, cercaram a aldeia, bloqueando todas as entradas e saídas. Esta unidade, a Divisão Das Reich, vinha de um longo e brutal serviço na Frente Oriental, onde a prática de retaliações contra civis era comum e a desumanização do inimigo, uma doutrina.
O pretexto oficial para a operação, segundo os alemães, era a busca por um oficial da SS, Helmut Kämpfe, que havia sido capturado pela Resistência Francesa (Maquis) dias antes. Contudo, nenhuma evidência jamais conectou Oradour-sur-Glane a qualquer atividade da Resistência. A escolha da aldeia parece ter sido um ato de punição coletiva, deliberado e arbitrário, um exemplo terrível para aterrorizar a população local.
O pregoeiro da cidade foi forçado a anunciar que todos os habitantes, incluindo doentes e idosos, deveriam se reunir no campo de feiras para uma verificação de documentos. A maioria dos moradores obedeceu sem grande alarme, acreditando tratar-se de um procedimento de rotina. Em pouco tempo, toda a população estava reunida, um rebanho humano prestes a ser conduzido ao matadouro.
Metodologia do Horror: Separação e Extermínio

Foto de outubro de 1943 da Família Machefer em Oradour-sur-Glane. França. Todas as mulheres e crianças da fotografia, exceto o pai, foram mortas pelas SS durante o massacre em 10 de junho de 1944.
A violência foi executada com uma precisão arrepiante e metódica. Primeiro, os soldados da SS separaram os homens das mulheres e crianças. Os 197 homens foram divididos em seis grupos e levados para celeiros e garagens espalhados pela aldeia. Lá, foram fuzilados com metralhadoras, que miravam deliberadamente em suas pernas para que não pudessem escapar. Em seguida, os soldados incendiaram os celeiros, queimando os corpos, muitos dos quais ainda vivos, em uma agonia indescritível.
Enquanto isso, as 240 mulheres e 205 crianças foram trancadas na igreja da aldeia. Os soldados então lançaram granadas de fumaça e explosivas para dentro do santuário, causando pânico e asfixia. Quando o caos se instalou, eles atearam fogo à igreja e metralharam qualquer um que tentasse escapar pelas janelas ou portas. A igreja, um lugar de fé e refúgio, foi transformada em um altar de sacrifício para a fúria nazista. O choro das crianças e os gritos das mães foram abafados pelo rugido do fogo.
As Vozes dos Sobreviventes: Testemunhas da Barbárie

Madame Marguerite Rouffanche, a única sobrevivente da igreja, passou mais de um ano se recuperando dos ferimentos. Após pular da janela da igreja, foi baleada cinco vezes antes de rastejar para um jardim, onde se escondeu até ser resgatada na tarde seguinte em Oradour-sur-Glane. Madame Rouffanche prestou depoimento no julgamento de Bordeaux em 1953, onde relatou os eventos que testemunhou em 10 de junho de 1944.
Apenas poucas pessoas sobreviveram para contar a história. Seis homens, incluindo Robert Hébras, conseguiram escapar dos celeiros, escondendo-se sob os corpos de seus companheiros e esperando o anoitecer para fugir. Da igreja, apenas uma mulher, Marguerite Rouffanche, sobreviveu. Ela conseguiu pular por uma janela do altar, sendo baleada cinco vezes antes de se arrastar para um jardim, onde se escondeu por mais de 24 horas até ser resgatada.
O testemunho de Marguerite é um dos relatos mais angustiantes do massacre. Ela descreveu como uma jovem mãe tentou lhe passar seu bebê pela janela antes de ambas serem metralhadas. Robert Hébras, que se tornou o último sobrevivente e faleceu em fevereiro de 2023, aos 97 anos, dedicou sua vida a preservar a memória do massacre. Ele perdeu sua mãe e duas irmãs na igreja. Em seus relatos, ele descreveu a sensação de impotência e a escolha de rastejar para fora do celeiro em chamas, preferindo a perspectiva de ser baleado a ser queimado vivo. Sua voz, assim como a de Marguerite, tornou-se a memória viva de Oradour.
Legado de Silêncio de um Crime Impune
A justiça para Oradour-sur-Glane foi largamente negada. O comandante Adolf Diekmann, que liderou o massacre, morreu em combate na Normandia poucas semanas depois, em 29 de junho de 1944, escapando de qualquer julgamento. Outros oficiais, como o General Heinz Lammerding, comandante da Divisão Das Reich, nunca foram extraditados para a França e morreram em liberdade na Alemanha.
Um julgamento ocorreu em Bordeaux em 1953, envolvendo 23 ex-soldados da SS, incluindo 14 alsacianos que alegaram ter sido recrutados à força. As sentenças brandas e uma subsequente anistia para os alsacianos, em nome da “unidade nacional”, causaram profunda revolta em Limousin. Por décadas, a aldeia viveu um luto silencioso, recusando-se a celebrar batismos, casamentos ou qualquer festividade, um protesto mudo contra a injustiça e o esquecimento.
Oradour-sur-Glane Hoje: Uma Aldeia Congelada no Tempo

Vista aérea das ruínas de Oradour-sur-Glane, preservadas até hoje como um memorial permanente.
Após a guerra, o presidente Charles de Gaulle ordenou que as ruínas de Oradour-sur-Glane fossem preservadas em seu estado original, como um memorial permanente à barbárie nazista. Uma nova aldeia foi construída nas proximidades, mas a antiga permanece como um museu a céu aberto, uma “aldeia mártir” que atrai cerca de 300.000 visitantes por ano.
Hoje, 80 anos depois, as ruínas enfrentam um novo inimigo: o tempo. Os edifícios estão desmoronando e a vegetação avança. Em 2024, o governo francês lançou um grande esforço de conservação, com um custo estimado de 19 milhões de euros, para garantir que as pedras continuem a contar sua história silenciosa. Como disse Agathe Hébras, neta do último sobrevivente, “as únicas testemunhas do massacre são estas pedras”. O Centre de la Mémoire, inauguado em 1999, serve como um centro de interpretação, contextualizando o massacre e seu legado para as novas gerações.
Em 10 de junho de 2024, na comemoração do 80º aniversário, os presidentes da França e da Alemanha estiveram juntos em Oradour, um poderoso símbolo de reconciliação construído sobre a memória de uma das mais terríveis atrocidades da guerra. A preservação de Oradour-sur-Glane serve como um lembrete universal de que, em crimes de guerra, é sempre a população civil que paga o preço mais alto, e que a memória, por mais dolorosa que seja, é a única salvaguarda contra a repetição da história.
Referências Bibliográficas
- “Oradour-sur-Glane: Martyred Village.” The National WWII Museum. https://www.nationalww2museum.org/war/articles/oradour-sur-glane-martyred-village.
- “Robert Hébras, the Last Survivor of the Oradour-sur-Glane Massacre, Has Died.” Le Monde. https://www.lemonde.fr/en/obituaries/article/2023/02/12/robert-hebras-the-last-survivor-of-the-oradour-sur-glane-massacre-has-died_6015353_15.html.
- “France Seeks to Save Nazi Massacre Village from Decay.” France 24. https://www.france24.com/en/live-news/20240530-france-seeks-to-save-nazi-massacre-village-from-decay.
- “Oradour-sur-Glane.” United States Holocaust Memorial Museum. https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/oradour-sur-glane.
- “A Comprehensive History of the Massacre.” Oradour.info. https://www.oradour.info.
- The World at War. Created by Jeremy Isaacs; narrated by Laurence Olivier; Thames Television for ITV. Episode 1, “A New Germany: 1933–1939” (dir. Hugh Raggett), includes the Oradour-sur-Glane prologue; Episode 26, “Remember” (dir. David Elstein), reprises it. https://en.wikipedia.org/wiki/The_World_at_War.











Sou pesquisador independente comprometido com uma investigação profunda sobre geopolítica, história e memória visual. Fui coordenador do Imagens Históricas, que chegou a ser o maior projeto independente do Brasil no biênio 2012-2014, com mais de 1 milhão de seguidores apenas no Facebook. Acredito que compreender o passado com profundidade é uma forma de decifrar o presente e antecipar o futuro. Criei o GeoMagno como um espaço para explorar conexões culturais esquecidas, fatos relevantes e os impactos silenciosos dos grandes acontecimentos sobre a nossa identidade coletiva. Entre arquivos, documentos e narrativas visuais, busco transformar história em uma experiência acessível, rica em contexto e livre de revisionismo e simplificações.